Caminhões-pipa levam o que ainda resta no açude próximo a Retirolândia. Só a chuva pra dar jeito.
Nelson tira água barrenta de minadouro improvisado: “É mais para os bichos, mas a gente vai beber também”.
Sozinha, uma lavadeira pousa à beira do açude. Parece indecisa. Arrisca um rápido sobrevoo e retorna à margem. Caminha um pouco mais pela lama dura e dá um novo rasante, mas torna a voltar, sem sequer triscar seu objetivo.
No mesmo instante, a lagoa rejeitada por um dos pássaros que mais gostam de água mata a sede de quatro caminhões-pipa. Bebem até se fartar de um líquido bastante esverdeado e nem um pouco insípido.
Caminhões-pipa levam o que ainda resta no açude próximo a Retirolândia. Só a chuva pra dar jeito.
Dali, os veículos abastecidos seguiriam umas 3 léguas, até o primeiro dos vários povoados próximos, onde centenas de pessoas receberiam com festa seu conteúdo sujo. Inesquecíveis os sorrisos das crianças quando os caminhões chegam em Gitaí, a 10 quilômetros do centro de Retirolândia, microrregião de Serrinha.
O verde que há muito tempo falta naquela planície vermelha sobra na água da única lagoa que ainda não secou por aquelas bandas.
O ‘Açude de Maurício’, que aliás já morreu, àquela altura é visto como a salvação. Mas, mesmo os pequenos que fizeram festa ao verem a água
entendem que aquilo é algo impróprio para o consumo humano.
Na esquerda a população de Gitaí enche os baldes e recebe água suja com festa. Na direita, Balbina usa o cloro da ‘Q´Boa’ para poder beber a água disponível
Em Gitaí, e em vários outros vilarejos pertencentes a Retirolândia, as pessoas têm bebido água que normalmente se dá somente para os bichos. “E olhe lá. Tem gado que não bebe isso, não”, diz Roque Bispo, líder comunitário da localidade, cercado pela criançada. “Você vê, né? Água não tem aqui, mas menino tá saindo pelo ladrão”, consegue brincar Roque.
Grávida de cinco meses e sem suportar a sede, a dona de casa Balbina Oliveira dos Santos vai, assim mesmo, consumir o produto. Conhece técnica para ‘tratar’ a água. Em um instante, se aproxima do fogão a lenha e cata cinzas com um caneco. Joga dentro do balde. Depois, acrescenta água sanitária. “Pode ser cimento no lugar das cinzas”, ensina.
Micróbios Em uma semana ou dez dias, garante Balbina, a água vai estar quase transparente. “O cimento assenta a sujeira todinha e a Q´Boa mata os micróbios”. A água dos caminhões-pipa é enviada pela própria prefeitura. O prefeito, José Albérico, o Bequinho, é a cara da aflição. “Tem que ser essa água mesmo. Não temos outra alternativa”. Segundo diz, não há o que fazer diante de mais de três anos sem chuva de verdade. “Depois vou gastar dinheiro com saúde. O povo fica doente, né?”.
Pelos caminhos da seca, na mesma região de Retirolândia, dezenas de açudes naturais, rios, córregos e barragens foram chupados pelo sol. O retrato real do problema está na observação dos moradores mais antigos. “Aquele açude ali tem 20 anos que existe e nunca tinha secado. Aquele rio sempre teve água da boa. Agora tá tudo assim, sem uma gota”, é o que mais se ouve pelas estradas.
Na tentativa desesperada de descobrir água, buracos são abertos com enxadas e pás pelas próprias famílias das zonas rurais. Aventuram um minadouro ou uma chuva esparsa que resolva encher os açudes improvisados. Em um desses buracos, encontramos Nelson Lopes da Silva, morador do povoado de Lajinha. Apesar dos seus 38 anos, a pele encruada do rosto, lembrando um rio evaporado, o faz parecer ter mais de 50.
Usa um tonel para levar a água, na verdade a lama, até o recipiente com capacidade para 200 litros. Coloca sobre a carroça puxada por um jegue. Andou uns 4 quilômetros para chegar até ali. “É água para bicho?”, perguntamos ao rapaz. “É pra banho, cozinha e para os ‘bicho’. Mas a gente bebe também. Não tá chegando outra”, responde, enxergando a vida na lama.
Depois de seu Nelson, flagramos outros tantos retirando água dos buracos cheios de barro. Um pessoal sofrido, mas com os pés no chão. Sabem exatamente o que vão encontrar. Tanta experiência em seca transforma o sertanejo em meteorologista. E a previsão é pessimista. “Do jeito que eu tô vendo aí, chuva mesmo, de verdade, só em novembro”, diz Ananias Almeida, 82 anos e muitas estiagens.
A previsão quase bate com a dos órgãos oficiais, como o Inmet, que espera chuva para outubro. Mas, ainda que haja um pessimismo no ar, a esperança é, de longe, mais forte que a ciência. “Não mando em nada. Se Deus quiser, chove amanhã. Acredito muito que ele há de querer”, diz Ananias. Dona Balbina, seu Roque, Nelson do Jegue, o prefeito Bequinho e até a lavadeira esperam por isso.
Água também falta na cidade
A seca não prejudica só os moradores da zona rural. Na cidade de Andorinha, falta água no centro da cidade. Basta seguir o rastro dos caminhões-pipa que a todo momento entram no município. São 35 veículos por dia trazendo água de Senhor do Bonfim e descarregando em um reservatório central, de onde é bombeada para as casas. “Tá amenizando a situação, mas ainda é muito difícil”, diz a gerente de abastecimento da Embasa em Andorinha, Michele Cardoso. O perrengue vivido pela população de 15 mil habitantes tem uma explicação simples.
A barragem que abastece a cidade, construída em 1982, secou completamente. “É a primeira vez que esse açude seca. Não acreditei quando vi essa água toda desaparecendo”, disse um dos homens que trabalhavam no descargue da água. “É Senhor do Bonfim que tá salvando”, disse, sobre a cidade e o padroeiro.
Por Alexandre Lyrio
alexandre.lyrio@redebahia.com.br - Extraído do Correio
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