Muitos brasileiros estão
acompanhando e aguardando o final do julgamento do mensalão. Alguns com grande
expectativa enquanto outros, como é o caso dos réus e advogados, com enorme ansiedade.
Apesar da relevância ética, moral, cultural e política, essa decisão do STF –
sem precedentes – vai ser revisada pela Corte Interamericana de Direitos
Humanos, com eventual chance de prescrição de todos os crimes, em razão de,
pelo menos, dois vícios procedimentais seríssimos que a poderão invalidar
fulminantemente.
O julgamento do STF, ao ratificar
com veemência vários valores republicanos de primeira linhagem - independência
judicial, reprovação da corrupção, moralidade pública, desonestidade dos
partidos políticos, retidão ética dos agentes públicos, financiamento ilícito
de campanhas eleitorais etc. -, já conta com valor histórico suficiente para se
dizer insuperável. Do ponto de vista procedimental e do respeito às regras do
Estado de Direito, no entanto, o provincianismo e o autoritarismo do direito
latino-americano, incluindo, especialmente, o do Brasil, apresentam-se como
deploráveis.
No caso Las Palmeras a Corte
Interamericana mandou processar novamente um determinado réu (na Colômbia)
porque o juiz do processo era o mesmo que o tinha investigado anteriormente. Uma
mesma pessoa não pode ocupar esses dois polos, ou seja, não pode ser investigador
e julgador no mesmo processo. O Regimento Interno do STF, no entanto (art.
230), distanciando- se do padrão civilizatório já conquistado pela
jurisprudência internacional, determina exatamente isso. Joaquim Barbosa, no
caso mensalão, presidiu a fase investigativa e, agora, embora psicologicamente
comprometido com aquela etapa, está participando do julgamento.
Aqui reside o primeiro vício
procedimental que poderá dar ensejo a um novo julgamento a ser determinado pela
Corte Interamericana.
Há, entretanto, um outro sério
vício procedimental: é o que diz respeito ao chamado duplo grau de jurisdição,
ou seja, todo réu condenado no âmbito criminal tem direito, por força da
Convenção Americana de Direitos Humanos (art. 8, 2, h), de ser julgado em
relação aos fatos e às provas duas vezes. O entendimento era de que, quem é
julgado diretamente pela máxima Corte do País, em razão do foro privilegiado,
não teria esse direito. O ex-ministro Márcio Thomaz Bastos levantou a
controvérsia e pediu o desmembramento do processo logo no princípio da primeira
sessão, tendo o STF refutado seu pedido por 9 votos a 2.
O Min. Celso de Mello,
honrando-nos com a citação de um trecho do nosso livro, atualizado em meados de
2009, sublinhou que a jurisprudência da Corte Interamericana excepciona o direito
ao duplo grau no caso de competência originária da corte máxima. Com base nesse
entendimento, eu mesmo cheguei a afirmar que a chance de sucesso da defesa,
neste ponto, junto ao sistema interamericano, era praticamente nula.
Hoje, depois da leitura de um
artigo (de Ramon dos Santos) e de estudar atentamente o caso Barreto Leiva
contra Venezuela, julgado bem no final de 2009 e publicado em 2010, minha convicção
é totalmente oposta. Estou seguro de que o julgamento do mensalão, caso não
seja anulado em razão do primeiro vício acima apontado (violação da garantia da
imparcialidade), vai ser revisado para se conferir o duplo grau de jurisdição
para todos os réus, incluindo-se os que gozam de foro especial por prerrogativa
de função.
No Tribunal Europeu de Direitos
Humanos é tranquilo o entendimento de que o julgamento pela Corte Máxima do
país não conta com duplo grau de jurisdição. Mas ocorre que o Brasil, desde
1998, está sujeito à jurisprudência da Corte Interamericana, que sedimentou
posicionamento contrário (no final de 2009). Não se fez, ademais, nenhuma
reserva em relação a esse ponto. Logo, nosso País tem o dever de cumprir o que
está estatuído no art. 8, 2, h, da Convenção Americana (Pacta sunt servanda).
A Corte Interamericana (no caso
Barreto Leiva) declarou que a Venezuela violou o seu direito reconhecido no
citado dispositivo internacional, “posto que a condenação proveio de um
tribunal que conheceu o caso em única instância e o sentenciado não dispôs, em
consequência [da conexão], da possibilidade de impugnar a sentença condenatória.”
A coincidência desse caso com a situação de 35 réus do mensalão é total, visto
que todos eles perderam o duplo grau de jurisdição em razão da conexão.
Mas melhor que interpretar é
reproduzir o que disse a Corte: “Cabe observar, por outro lado, que o senhor
Barreto Leiva poderia ter impugnado a sentença condenatória emitida pelo julgador
que tinha conhecido de sua causa se não houvesse operado a conexão que levou a
acusação de várias pessoas no mesmo tribunal. Neste caso a aplicação da regra
de conexão traz consigo a inadmissível consequência de privar o sentenciado do
recurso a que alude o artigo 8.2.h da Convenção”.
A decisão da Corte foi mais
longe: inclusive os réus com foro especial contam com o direito ao duplo grau;
por isso é que mandou a Venezuela adequar seu direito interno à jurisprudência
internacional: “Sem prejuízo do anterior e tendo em conta as violações declaradas
na presente sentença, o Tribunal entende oportuno ordenar ao Estado que, dentro
de um prazo razoável, proceda a adequação de seu ordenamento jurídico interno,
de tal forma que garanta o direito a recorrer das sentenças condenatórias, conforme
artigo 8.2.h da Convenção, a toda pessoa julgada por um ilícito penal,
inclusive aquelas que gozem de foro especial.”
Há um outro argumento forte
favorável à tese do duplo grau de jurisdição: o caso mensalão conta, no total,
com 118 réus, sendo que 35 estão sendo julgados pelo STF e outros 80 respondem
a processos em várias comarcas e juízos do país (O Globo de 15.09.12). Todos
esses 80 réus contarão com o direito ao duplo grau de jurisdição, que foi
negado pelo STF para outros réus. Situações idênticas tratadas de forma
absolutamente desigual.
Indaga-se: o que a Corte garante
aos réus condenados sem o devido respeito ao direito ao duplo grau de jurisdição,
tal como no caso mensalão? A possibilidade de serem julgados novamente, em
respeito à regra contida na Convenção Americana, fazendo-se as devidas
adequações e acomodações no direito interno. Com isso se desfaz a coisa julgada
e pode eventualmente ocorrer a prescrição.
Diante dos precedentes que acabam
de ser citados parece muito evidente que os advogados poderão tentar, junto à
Comissão Interamericana, a obtenção de uma inusitada medida cautelar para
suspensão da execução imediata das penas privativas de liberdade, até que seja
respeitado o direito ao duplo grau. Se isso inovadoramente viesse a ocorrer –
não temos notícia de nenhum precedente nesse sentido -, eles aguardariam o
duplo grau em liberdade. Conclusão:
por vícios procedimentais decorrentes da baixíssima adequação da eventualmente
autoritária jurisprudência brasileira à jurisprudência internacional, a mais
histórica de todas as decisões criminais do STF pode ter seu brilho ético,
moral, político e cultural nebulosamente ofuscado.
*LUIZ FLÁVIO GOMES, 54, doutor em
direito penal, fundou a rede de ensino LFG. Foi promotor de justiça (de 1980 a
1983), juiz (1983 a 1998) e advogado (1999 a 2001).
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