quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Uruguai despenaliza o aborto


LUIZ FLÁVIO GOMES (@professorLFG)*
O Uruguai deve ser o primeiro país da América do Sul a despenalizar o aborto. Na América Latina isso já existe em Cuba e na Cidade do México. A despenalização foi aprovada pela Câmara dos Deputados e, muito provavelmente, também passará no Senado. Uma primeira observação importante: despenalizar (não punir criminalmente) não significa legalizar (voltarei logo abaixo ao assunto).

O projeto de lei prevê a possibilidade de aborto até a 12ª semana de gravidez. Para o caso de estupro a interrupção pode ser feita até a 14ª semana. E na hipótese de risco para a gestante não há prazo limite.

A mesma proposta já foi rejeitada em outras oportunidades naquele país. Em 2008, o então presidente Tabaré Vázquez vetou a proposta “por razões filosóficas e biológicas”.

Fontes da notícia: O Estado de S. Paulo de 27.09.12, p. A8 e o O Globo de 27.09.12, p. 35.

O tema continua polêmico no mundo todo. No Brasil a discussão também é acirrada, porque envolve filosofia (convicções), religião (crenças e dogmas), direito (liberal ou conservador), bioética (ética individual, ética coletiva) etc.

Nossa Lei Maior assegura a liberdade de crença e é nela que, principalmente, os religiosos se apegam para refutar a possibilidade de as mulheres escolherem pela maternidade ou não.

Estamos convictos de que a crença de cada cidadão há de ser respeitada pelo Estado e por todos. Por força do pensamento tolerante, nunca devemos impor nossas crenças aos outros. Nem imaginar que uma seja superior à outra. Mas o Direito, muitas vezes, segue outros caminhos. Mesmo no caso de gravidez resultante de estupro, muitas religiões não aceitam o aborto. O direito brasileiro atual não segue essa orientação e deixa por conta da mulher decidir de faz ou não o aborto.

As divergências entre a religião e o direito são frequentes. São distintas as formas de ver o mundo. São diversas as maneiras de enxergar a mesma realidade. Não somos iguais (nem nunca seremos). Todos nós temos nossas convicções, bem como nossas diferentes visões do mundo (“Weltanschaaung”). A harmonia da convivência exige respeito aos diferentes modos de pensar, enquanto isso não afeta os direitos dos outros.

O Direito há de primar pela pacificação social, assim como o Estado deve buscar a proteção dos direitos de todos os seus cidadãos. A escolha pelo aborto, nos países que o permitem, desde que preenchidas as condições da lei, há de ser uma opção de cada mulher, assegurando-se o devido respeito à sua crença. No Brasil, nenhuma mulher é obrigada a fazer aborto em caso de estupro. Faz, ou não, de acordo com sua convicção (sua religião, sua crença).

O Supremo Tribunal Federal, em decisões históricas, já garantiu tanto o direito à união homoafetiva como o direito ao aborto do feto anencefálico. Isso não significa que todas as pessoas devam ser gays nem que todas as mulheres devam fazer o aborto do feto anencéfalo. Quando a lei possibilita o aborto, desde que preenchidas as condições fixadas, isso não constitui carta branca à sociedade para a matança de fetos. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente (diz a Convenção Americana de Direitos, Humanos, art. 4º). A garantia de que aquelas mulheres que não queiram a maternidade possam optar por isso de forma segura, com o amparo do Estado, pode ser melhor caminho que o do aborto clandestino. 

O autor do projeto aprovado no Uruguai, Iván Posada, bem esclareceu: despenalizar (permitir o aborto em algumas situações) não é o mesmo que legalizar (tal como se passa em Cuba). “No Uruguai, o procedimento só poderá ser realizado até a 12ª semana de gestação, e as mulheres deverão, primeiro, ser atendidas por uma equipe de médicos e psicólogos. Depois dessas consultas, as mulheres terão cinco dias para refletir e, finalmente, poderão decidir” (O Globo de 27.09.12, p. 35).

Esse mesmo sistema, depois de implantado na Alemanha, reduziu muito o número dos abortos clandestinos (e muitas vidas foram preservadas). Não havendo nenhuma alternativa legal, a mulher tende a fazer o chamado aborto clandestino (somente no Brasil calcula-se em mais de um milhão por ano), com todos os riscos daí decorrentes. Depois das explicações dos médicos e psicólogos, muitas mulheres desistem de fazer o aborto. Talvez esse seja o caminho razoável para enfrentar essa difícil questão, carregada de emoções filosóficas, religiosas etc.

Parece ser o caminho que melhor preserva vidas. Daí a necessidade de uma discussão com razoabilidade. Vamos aguardar os debates no Senado uruguaio, observando-se que a mesma polêmica também está em pauta no Projeto do novo Código Penal brasileiro.

*LFG – Jurista e professor. Fundador da Rede de Ensino LFG. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil e coeditor do atualidadesdodireito.com.br. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001). Siga-me: www.professorlfg.com.br.

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