Alice
Bianchini* - Maíra
Zapater**
“Tristeza” é o nome do bairro da cidade de
Porto Alegre onde uma mulher de 39 anos e seu filho de 5 foram assassinados
dentro de casa, a golpes de faca. Para a Polícia Civil, o principal suspeito é o
marido dela, pai da criança. Foram encontrados bilhetes em que ele afirmava
suspeitar da fidelidade da esposa e lhe fazia ameaças, e também um software que
utilizou para monitorar o correio eletrônico da vítima. O homem teria tentado o
suicídio logo após o crime, atirando-se de uma ponte em um rio.
Além da trágica ironia do nome do bairro, a tristeza também provoca algumas reflexões.
Antes de mais nada, em respeito ao
princípio da presunção de inocência, não se pretende explorar o que foi até agora
investigado nesse caso concreto, nem tampouco adiantar condenação a quem se
encontra na situação de indiciado. Ainda assim, o caso noticiado é de extrema
utilidade para pensar alguns padrões mostrados por pesquisas quantitativas
acerca da violência de gênero, como apontam os indícios já apurados: homicídios
contra mulher são em geral praticados em casa, pelo companheiro, muitas vezes com
instrumento diverso da arma de fogo.
De acordo com o Mapa da Violência
(2012) elaborado pelo Instituto Sangari, as mortes de mulheres decorrentes de
homicídio comumente acontecem na esfera doméstica (em 68,8% dos atendimentos a
mulheres vítimas de violência, a agressão aconteceu na residência da vítima).
Quanto à relação entre a mulher e seu agressor, 65% das agressões tiveram
autoria do parceiro ou ex - parceiro das vítimas na faixa dos 20 aos 49 anos. E,
apesar de as armas de fogo continuarem a ser o principal meio de cometimento dos
homicídios, o fator gênero diversifica marcadamente a proporção de armas
utilizadas: nos casos de vítimas do gênero masculino, as armas de fogo somam 75,5%
dos incidentes, enquanto nos de vítimas do gênero feminino somam pouco mais da
metade. Já os meios que exigem contato direto, como objetos cortantes,
penetrantes, contundentes, sufocação etc., são mais expressivos quando se trata
de violência contra as mulheres, que em 26% são mortas com objetos cortantes ou
penetrantes.
Outro ponto relevante é a questão do
ciúme como motivação. As legislações penais brasileiras que antecederam o
Código Penal de 1940 contavam com dispositivos legais que mitigavam a
culpabilidade do criminoso passional, notadamente quando este fosse do gênero
masculino e praticasse o crime contra uma mulher de sua relação: a lei
portuguesa aplicável ao Brasil-colônia autorizava que um homem matasse sua
mulher quando surpreendida em adultério (regra eliminada pelo Código Criminal
do Império em 1830); o Código Penal da República (1890) previa o “estado de
perturbação total dos sentidos e da inteligência” como causa excludente de
ilicitude, a qual recorrentemente beneficiava homicidas que alegassem ter sido
acometidos por este estado por descobrir uma traição.
O Código Penal de 1940, atualmente
em vigor, eliminou esta causa de exclusão da ilicitude, gerando a necessidade
de os defensores de réus acusados de homicídios passionais desenvolverem outras
teses que possibilitassem a absolvição de seus clientes. Os crimes dolosos
contra a vida são julgados por Tribunais do Júri[1],
composto por jurados leigos e regido por princípios específicos, como a
plenitude de defesa, que possibilita o uso de argumentações não previstas em
lei na defesa do réu: assim começa a ser defendida a tese “legítima defesa da
honra e da dignidade”, muitas vezes aceita por jurados convencidos do direito
outorgado ao homem traído (ou até mesmo apenas desconfiado e ciumento de uma
mulher “fiel” e “honesta”) de “lavar sua honra com sangue”. A “legítima defesa
da honra” pode ser interpretada como um dos grandes símbolos da influência
cultural no julgamento pelo Júri, constituindo a representação judicializada
não simplesmente da tolerância para com a violência contra a mulher, mas
verdadeira naturalização e institucionalização destas práticas, assim
legitimadas pelo Poder Judiciário.
Os assassinatos
cometidos em Tristeza, se confirmada a autoria do marido, estarão entre os
casos representativos desses padrões revelados nas pesquisas: é possível
extrair dos números analisados a conclusão de que envolver-se em uma relação
afetiva ainda é fator de risco para muitas mulheres, pois, como se vê, há maior
probabilidade estatística de uma mulher ser morta em sua própria casa, com
objetos cotidianos fazendo as vezes de armas letais, e tendo como autor, em
muitas ocasiões, o escolhido para construir uma vida em comum. Sobre o
contrassenso de se destruir a pessoa objeto do desejo, diz Luíza Nagib Eluf:
Em
uma primeira análise, superficial e equivocada, poderia parecer que a paixão,
decorrente do amor, tornaria nobre a conduta do homicida, que teria matado por
não suportar a perda de seu objeto de desejo ou para lavar sua honra ultrajada.
No entanto, a paixão que move a conduta criminosa não resulta do amor, mas sim
do ódio, da possessividade, do ciúme ignóbil, da busca da vingança, do
sentimento de frustração aliado à prepotência, da mistura de desejo sexual
frustrado com rancor.[2]
E é por isso mesmo que,
para além da inadmissibilidade jurídica de qualquer linha defensiva que
sustente a obsoleta legitimidade de defesa da “honra”, a atual prevalência do
entendimento jurisprudencial do ciúme como motivo torpe[3]
pode ser um bom indicativo de um novo pensamento no tocante à violência
praticada no interior de relacionamentos amorosos.
O
caso do bairro de Tristeza, tudo indica, enquadra-se em um padrão a um só tempo
revelado pelas estatísticas e (por muito tempo) naturalizado pelos valores (até
então) vigentes confirmados por decisões judiciais. O mais eficaz em termos de
construção de uma sociedade menos violenta e mais igualitária quanto às
relações de gênero talvez passe antes pelas mudanças de mentalidade que,
felizmente, parecem despontar.
Fontes
pesquisadas:
G1
Instituto
Sangari
ELUF,
Luíza Nagib. A paixão no banco dos réus-
casos passionais célebres: de Pontes Visgueiro a Pimenta Neves. São Paulo:
Ed. Saraiva, 2002.
* Doutora em Direito Penal (PUC-SP). Mestre em Direito (UFSC).
Diretora do Instituto LivroeNet e do Portal www.atualidadesdodireito.com.br.
Coordenadora do Curso de Especialização em Ciências Penais da
Anhanguera-Uniderp/LFG. Presidenta do IPAN – Instituto Panamericano de Política
Criminal. Blog: www.atualidadesdodireito.com.br/alicebianchini
**
Mestranda em Direitos Humanos (Faculdade de Direito da USP). Graduada em
Direito (PUC-SP) e Ciências Sociais (FFLCH-USP). Especialista em Direito Penal
(ESMP). Pesquisadora do Núcleo de Antropologia do Direito (NADIR-FFLCH/USP) e
do Instituto LivroeNet. Blog: www.atualidadesdodireito.com.br//mairazapater/
[1] Nos termos do artigo 5º, inciso
XVIII, da Constituição Federal.
[2] A paixão no banco dos réus, p. 111.
[3] Luíza Nagib Eluf cita neste
sentido: TJRJ, AC, Rel. Paulo Sérgio Fabião, RT 733/659; TJSP, AC,Rel. Jarbas
Mazzoni, RT 598/310; TJSP, AC, Rel. Weiss de Andrade, RT 560/323; TJMS, AC nº
2.546/97, Rel. Des. Paulo Inácio Dias Lessa. In A paixão no banco dos réus.
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