Alice
Bianchini* - Maíra
Zapater**
A estatística é um dos instrumentos preferenciais em estudos que envolvam
fenômenos sociais, pois os levantamentos quantitativos das suas ocorrências
permitem análises por meio das quais se podem concluir sobre fatores que
contribuíram para seu sucedimento no passado e quais as probabilidades de que
se repitam futuramente.
Introduzido o
tema, destaca-se a reflexão central deste texto: qual a importância de se
levantarem dados estatísticos acerca da violência de gênero? Esta série de
artigos examinará os mapas elaborados sobre a violência de gênero no Brasil e na
Argentina, os quais, embora com alguma diferença de recortes, procuraram trazer
à baila dados relevantes sobre violências que vitimam especificamente pessoas
do gênero feminino, permitindo investigar se a pertença a esse gênero constitua-se
em fator de risco de envolvimento em situação de violência.
Os dados
estatísticos criminais são coletados com a finalidade de detectar quais e
quantos foram os crimes praticados até o momento da coleta, para, então,,
considerando-se o os dados obtidos, elaborar políticas para sua erradicação e
prevenção. Este tipo de levantamento empírico pode se relacionar, portanto, com
o uso da estatística para a problematização de direitos humanos quando as suas violações
forem perpetradas por meio de condutas criminosas, como comumente ocorre no
caso da violência de gênero, que é uma espécie de violação de direitos humanos.
Pode-se, pois, colocar uma segunda questão: qual o papel da
estatística nos casos de violação de direitos humanos, sem perder de vista o
foco das violações individuais que devem ser evitadas e combatidas?
Métodos quantitativos como a
estatística são frequentemente utilizados nas apurações de violações de
direitos, em grande medida por trabalharem com dados quantitativos que conferem
certa concretude às informações observadas por pesquisadores e cientistas
sociais. Muitas vezes, inclusive, abalam verdades aceitas pelo senso comum, mesmo
que, apesar disso, em outros casos, confirmem o pensamento da sociedade sobre
determinada questão.
Por outro lado, é importante
advertir que, não obstante o imenso prestígio conferido ao método quantitativo
nas ciências sociais, deve-se atentar para a existência de alguns obstáculos, justamente
para que sua aplicação se traduza, não só, em uma quantificação de dados, mas,
também, em uma análise de qualidade. Podem-se apontar três problemas mais
recorrentes no uso de dados estatísticos como instrumento de análise de
violação de direitos humanos: dificuldades (i) de homogeneizar definições de direitos
humanos e suas violações, especialmente em estudos comparativos entre países,
(ii) de se obter dados confiáveis, e (iii) de analisar os impactos de
diferentes abusos em variados contextos.
Transpondo-se
esses problemas para o tema da violência de gênero, torna-se fácil ilustrá-los
com situações concretas: o reconhecimento de direitos da mulher e de suas
respectivas violações passa pelo filtro de diferenças culturais profundas,
fazendo com que uma conduta possa ser considerada séria violação de direito em
uma sociedade, mas plenamente aceitável em outra; quanto à obtenção de dados
confiáveis, basta lembrar que as informações de registros policiais referentes
a vítimas de violência doméstica não eram desagregadas sob tal título, no
Brasil, até 2006 (quando entrou em vigor a Lei Maria da Penha), e se as
diferentes matrizes culturais dificultam a uniformização de um conceito sobre
direitos das mulheres, com muito mais motivo obstaculizam a avaliação do
impacto da violação destes direitos.
Ainda que existam todas essas
ressalvas, feitas em nome da cautela exigida para que se garanta a qualidade em
um exame de dados, permanece de extrema utilidade a análise e a comparação dos
resultados obtidos nos mapas brasileiro e argentino da violência de gênero,
pois ademais de ambos pertencerem à América Latina (o que já traz certo grau de
proximidade cultural), os países guardam muitas semelhanças históricas, em
especial no tocante ao recente processo de redemocratização pós-ditadura militar,
que traz como reflexo uma crescente busca da implementação de direitos humanos
(e, via de consequência, de direito das mulheres). Mesmo levando em
consideração os obstáculos apontados ao uso de dados estatísticos na
investigação de violações de direitos humanos, é possível afirmar que a
estatística aplicada aos casos pode fazer diferença, ao facilitar a compreensão
da extensão e tipo das violações, identificar os grupos mais afetados e definir
responsabilidades. Isso porque é intrínseca à ciência estatística a revelação
de padrões, e quando esses padrões se referem a violações de direitos, surge a
possibilidade de elaboração de teorias por meio da identificação dos
componentes causais.
Ademais, nota-se o uso frequente da
estatística para aferir dados sobre efeitos da implementação de direitos
econômicos, sociais e culturais, mas não se observa o mesmo quando se trata de
violações a direitos civis e políticos. É de suma importância salientar que a
violência contra a mulher corresponde exatamente a esse tipo de violação, pois
o homicídio é violação do direito à vida; a lesão corporal, violação do direito
à integridade física e segurança, e assim por diante. A boa notícia é que essa
violação de direitos civis das mulheres, por resultar de relações privadas na
maior parte dos casos, é mais fácil de ser verificada por pesquisas
estatísticas do que as violações desses direitos praticadas por parte de órgãos
estatais, como (infelizmente) é habitual. Além disso, compromissos assumidos
internacionalmente (como a Convenção de Belém do Pará, que visa erradicar toda
forma de violência contra a mulher no âmbito do continente americano) fomentam atitudes
do próprio Estado na erradicação da violência. Ainda, dados podem se revelar
úteis mesmo nas omissões: por exemplo, a mencionada desagregação de dados de
violência doméstica antes da Lei Maria da Penha indica que o problema era pouco
visualizado, e isso, parece, foi modificado.
É necessário, portanto, por tudo isso, ter em
mente que os números sozinhos não “falam” muita coisa: é imperiosa a realização
de análise crítica dos dados coletados, amparada em bibliografia que oriente
seu exame. Quer dizer: “ler” um levantamento estatístico não permite, de per
si, extrair dele conclusões muitas vezes superficiais, tais como, p. ex., há
“muitos casos” ou há “poucos casos” deste ou daquele tipo de crime ou violação
de direitos. A observação de dados deve ser feita de forma sistematizada e
levando em consideração o contexto social em que tais dados foram recolhidos.
É importante,
enfim, observar dados estatísticos de violência contra a mulher para, em
primeiro lugar, procurar compreender se esta foi praticada em razão do gênero.
Sendo positiva a resposta, revela-se uma condição de vulnerabilidade que
precisa ser combatida com e para a devida implementação dos direitos humanos em
uma concepção de universalidade.
Colocada aqui
a necessária problematização do uso dos estudos estatísticos para avaliar
violações de direitos humanos, trataremos, no próximo
artigo desta série, de estudos
comparativos das posições de Brasil e Argentina no ranking mundial do
índice de homicídios de mulheres, buscando identificar fatores que contribuem
para os números desse tipo de crime em cada um dos países.
Referências
bibliográficas:
CLAUDE,
Richard P., JABINE, Thomas B. Exame dos problemas dos Direitos Humanos por
meio da estatística. In Direitos Humanos e Estatística: o arquivo posto a nu. Org. Thomas
B. Jabine; Richard P. Claude; traduzido por Ginson César Cardoso de Souza. São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Núcleo de Estudos da Violência,
2007.
GOLDSTEIN,
Robert Justin. As limitações do uso de dados quantitativos no estudo das
violações dos Direitos Humanos. In Direitos Humanos e Estatística: o arquivo posto a nu. Org. Thomas
B. Jabine; Richard P. Claude; traduzido por Ginson César Cardoso de Souza. São
Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Núcleo de Estudos da Violência,
2007.
* Doutora em Direito Penal (PUC-SP). Mestre em Direito (UFSC).
Diretora do Instituto LivroeNet e do Portal www.atualidadesdodireito.com.br.
Coordenadora do Curso de Especialização em Ciências Penais da
Anhanguera-Uniderp/LFG. Presidenta do IPAN – Instituto Panamericano de Política
Criminal. Blog: www.atualidadesdodireito.com.br/alicebianchini
**
Mestranda em Direitos Humanos (Faculdade de Direito da USP). Graduada em
Direito (PUC-SP) e Ciências Sociais (FFLCH-USP). Especialista em Direito Penal
(ESMP). Pesquisadora do Núcleo de Antropologia do Direito (NADIR-FFLCH/USP) e
do Instituto LivroeNet. Blog: www.atualidadesdodireito.com.br//mairazapater/
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