sábado, 6 de outubro de 2012

Quantidade e qualidade: a importância dos levantamentos estatísticos – série estudos comparativos entre os mapas da violência contra a mulher no Brasil e na Argentina


Alice Bianchini*  -  Maíra Zapater**
            A estatística é um dos instrumentos preferenciais em estudos que envolvam fenômenos sociais, pois os levantamentos quantitativos das suas ocorrências permitem análises por meio das quais se podem concluir sobre fatores que contribuíram para seu sucedimento no passado e quais as probabilidades de que se repitam futuramente.
            Introduzido o tema, destaca-se a reflexão central deste texto: qual a importância de se levantarem dados estatísticos acerca da violência de gênero? Esta série de artigos examinará os mapas elaborados sobre a violência de gênero no Brasil e na Argentina, os quais, embora com alguma diferença de recortes, procuraram trazer à baila dados relevantes sobre violências que vitimam especificamente pessoas do gênero feminino, permitindo investigar se a pertença a esse gênero constitua-se em fator de risco de envolvimento em situação de violência.

            Os dados estatísticos criminais são coletados com a finalidade de detectar quais e quantos foram os crimes praticados até o momento da coleta, para, então,, considerando-se o os dados obtidos, elaborar políticas para sua erradicação e prevenção. Este tipo de levantamento empírico pode se relacionar, portanto, com o uso da estatística para a problematização de direitos humanos quando as suas violações forem perpetradas por meio de condutas criminosas, como comumente ocorre no caso da violência de gênero, que é uma espécie de violação de direitos humanos. Pode-se, pois, colocar uma segunda questão: qual o papel da estatística nos casos de violação de direitos humanos, sem perder de vista o foco das violações individuais que devem ser evitadas e combatidas?
            Métodos quantitativos como a estatística são frequentemente utilizados nas apurações de violações de direitos, em grande medida por trabalharem com dados quantitativos que conferem certa concretude às informações observadas por pesquisadores e cientistas sociais. Muitas vezes, inclusive, abalam verdades aceitas pelo senso comum, mesmo que, apesar disso, em outros casos, confirmem o pensamento da sociedade sobre determinada questão.
            Por outro lado, é importante advertir que, não obstante o imenso prestígio conferido ao método quantitativo nas ciências sociais, deve-se atentar para a existência de alguns obstáculos, justamente para que sua aplicação se traduza, não só, em uma quantificação de dados, mas, também, em uma análise de qualidade. Podem-se apontar três problemas mais recorrentes no uso de dados estatísticos como instrumento de análise de violação de direitos humanos: dificuldades (i) de homogeneizar definições de direitos humanos e suas violações, especialmente em estudos comparativos entre países, (ii) de se obter dados confiáveis, e (iii) de analisar os impactos de diferentes abusos em variados contextos.
Transpondo-se esses problemas para o tema da violência de gênero, torna-se fácil ilustrá-los com situações concretas: o reconhecimento de direitos da mulher e de suas respectivas violações passa pelo filtro de diferenças culturais profundas, fazendo com que uma conduta possa ser considerada séria violação de direito em uma sociedade, mas plenamente aceitável em outra; quanto à obtenção de dados confiáveis, basta lembrar que as informações de registros policiais referentes a vítimas de violência doméstica não eram desagregadas sob tal título, no Brasil, até 2006 (quando entrou em vigor a Lei Maria da Penha), e se as diferentes matrizes culturais dificultam a uniformização de um conceito sobre direitos das mulheres, com muito mais motivo obstaculizam a avaliação do impacto da violação destes direitos.
            Ainda que existam todas essas ressalvas, feitas em nome da cautela exigida para que se garanta a qualidade em um exame de dados, permanece de extrema utilidade a análise e a comparação dos resultados obtidos nos mapas brasileiro e argentino da violência de gênero, pois ademais de ambos pertencerem à América Latina (o que já traz certo grau de proximidade cultural), os países guardam muitas semelhanças históricas, em especial no tocante ao recente processo de redemocratização pós-ditadura militar, que traz como reflexo uma crescente busca da implementação de direitos humanos (e, via de consequência, de direito das mulheres). Mesmo levando em consideração os obstáculos apontados ao uso de dados estatísticos na investigação de violações de direitos humanos, é possível afirmar que a estatística aplicada aos casos pode fazer diferença, ao facilitar a compreensão da extensão e tipo das violações, identificar os grupos mais afetados e definir responsabilidades. Isso porque é intrínseca à ciência estatística a revelação de padrões, e quando esses padrões se referem a violações de direitos, surge a possibilidade de elaboração de teorias por meio da identificação dos componentes causais.
            Ademais, nota-se o uso frequente da estatística para aferir dados sobre efeitos da implementação de direitos econômicos, sociais e culturais, mas não se observa o mesmo quando se trata de violações a direitos civis e políticos. É de suma importância salientar que a violência contra a mulher corresponde exatamente a esse tipo de violação, pois o homicídio é violação do direito à vida; a lesão corporal, violação do direito à integridade física e segurança, e assim por diante. A boa notícia é que essa violação de direitos civis das mulheres, por resultar de relações privadas na maior parte dos casos, é mais fácil de ser verificada por pesquisas estatísticas do que as violações desses direitos praticadas por parte de órgãos estatais, como (infelizmente) é habitual. Além disso, compromissos assumidos internacionalmente (como a Convenção de Belém do Pará, que visa erradicar toda forma de violência contra a mulher no âmbito do continente americano) fomentam atitudes do próprio Estado na erradicação da violência. Ainda, dados podem se revelar úteis mesmo nas omissões: por exemplo, a mencionada desagregação de dados de violência doméstica antes da Lei Maria da Penha indica que o problema era pouco visualizado, e isso, parece, foi modificado.
             É necessário, portanto, por tudo isso, ter em mente que os números sozinhos não “falam” muita coisa: é imperiosa a realização de análise crítica dos dados coletados, amparada em bibliografia que oriente seu exame. Quer dizer: “ler” um levantamento estatístico não permite, de per si, extrair dele conclusões muitas vezes superficiais, tais como, p. ex., há “muitos casos” ou há “poucos casos” deste ou daquele tipo de crime ou violação de direitos. A observação de dados deve ser feita de forma sistematizada e levando em consideração o contexto social em que tais dados foram recolhidos.
            É importante, enfim, observar dados estatísticos de violência contra a mulher para, em primeiro lugar, procurar compreender se esta foi praticada em razão do gênero. Sendo positiva a resposta, revela-se uma condição de vulnerabilidade que precisa ser combatida com e para a devida implementação dos direitos humanos em uma concepção de universalidade.
            Colocada aqui a necessária problematização do uso dos estudos estatísticos para avaliar violações de direitos humanos, trataremos, no próximo artigo desta série, de estudos comparativos das posições de Brasil e Argentina no ranking mundial do índice de homicídios de mulheres, buscando identificar fatores que contribuem para os números desse tipo de crime em cada um dos países.

Referências bibliográficas:
CLAUDE, Richard P., JABINE, Thomas B. Exame dos problemas dos Direitos Humanos por meio da estatística. In Direitos Humanos e Estatística: o arquivo posto a nu. Org. Thomas B. Jabine; Richard P. Claude; traduzido por Ginson César Cardoso de Souza. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Núcleo de Estudos da Violência, 2007.
GOLDSTEIN, Robert Justin. As limitações do uso de dados quantitativos no estudo das violações dos Direitos Humanos. In Direitos Humanos e Estatística: o arquivo posto a nu. Org. Thomas B. Jabine; Richard P. Claude; traduzido por Ginson César Cardoso de Souza. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Núcleo de Estudos da Violência, 2007.
* Doutora em Direito Penal (PUC-SP). Mestre em Direito (UFSC). Diretora do Instituto LivroeNet e do Portal www.atualidadesdodireito.com.br. Coordenadora do Curso de Especialização em Ciências Penais da Anhanguera-Uniderp/LFG. Presidenta do IPAN – Instituto Panamericano de Política Criminal. Blog: www.atualidadesdodireito.com.br/alicebianchini
** Mestranda em Direitos Humanos (Faculdade de Direito da USP). Graduada em Direito (PUC-SP) e Ciências Sociais (FFLCH-USP). Especialista em Direito Penal (ESMP). Pesquisadora do Núcleo de Antropologia do Direito (NADIR-FFLCH/USP) e do Instituto LivroeNet. Blog: www.atualidadesdodireito.com.br//mairazapater/

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