LUIZ FLÁVIO GOMES (@professorLFG)*
Não
havia prova direta contra ela, nenhuma testemunha viu o momento do disparo e
ela negava ter matado o coronel Ubiratan Guimarães, em 2006. O promotor de
justiça assim como o assistente de acusação procurou colocar em evidência os
indícios incriminadores (indícios vários). Mas faltaram mais provas técnicas,
mais investigação. Na ausência de provas diretas e seguras, ganham relevância
ímpar os debates orais bem como a capacidade de impressionar de cada um. A
verdade, dentro do processo penal, é sempre a verdade processualmente adquirida,
que depende de um milhão de fatores (nem sempre legais).
Quando
as provas são dúbias, o que manda é a expressividade e, nesse ponto, o defensor
(Malavasi) foi bastante competente para explorar os pontos duvidosos
(indefinição do horário e dia da morte, recebimento de uma mensagem – um
torpedo - no celular da vítima por volta das 11.27h do domingo, dúvida sobre a
existência do tiro ou não no sábado etc.). Por seu turno a defensora entrou em
discussões pessoais com o assistente de acusação, anulando sua carga
acusatória. A chamada capacidade de ação acabou favorecendo a defesa. Tudo
conta do momento do julgamento: poder econômico, capital cultural (ré formada
pela USP), influência política, status social, capacidade de verbalização
(falar bem ou não), gestos, o fato de a ré ter comparecido perante os jurados,
aparência das pessoas (a ré não correspondia ao estereótipo do marginalizado
difundido pela mídia) etc.
Tudo
isso conta, porque as decisões são tomadas levando em consideração também fatores
extrajudiciais e extralegais (psicológicos, sociológicos, culturais etc.). Pessoas
que parecem ser dignas de crédito (pela forma de vestir, de falar, de impressionar)
conquistam apreciáveis vantagens.
Os
chamados códigos particulares dos juízes (second
codes) existem. Há muitas vezes preconceitos raciais, religiosos, culturais
etc. Pessoas estigmatizadas, estereotipadas, discriminadas, de um modo geral,
são extremamente prejudicadas. O seu contrário (pessoa com status, bem
apresentável, rica ou bem posicionada, bem formada etc.), normalmente, leva
grande vantagem, salvo quando se trata de um julgamento disruptivo (como é o
caso do mensalão, onde o status, o poder político, a capacidade de contratar
bons advogados etc., tudo está funcionando contra os réus).
Outro
fator fundamental a ser considerado diz respeito ao julgamento da própria
vítima. Ela também é julgada, pelos seus antecedentes, pelo seu status, pela
sua respeitabilidade etc. Contra o coronel Ubiratan pesava o fato de ser
acusado de ter comandado a operação Carandiru, que culminou com a morte de 111
presos. Tudo isso pesa no julgamento. Também o clima de suspeita geral contra a
polícia, suspeita de que vem matando inocentes, em resposta às mortes contra
policiais. E tudo isso acontecia bem na semana do julgamento.
A
defesa soube bem explorar o que se chama de “blaming the victim”, ou seja,
massacre à vítima (para livrar a ré de responsabilidade). E, ademais, todos
sabemos que os jurados preferem absolver um culpado que condenar um inocente.
Não havendo certeza, sabemos que a dúvida favorece o réu. A ré, de outra parte,
já tinha sido impronunciada em primeira instância. Já havia um juiz que não tinha
se convencido da sua responsabilidade. Por força de um recurso é que ela acabou
sendo levada a júri. Por todos os motivos que acabam de ser alinhados pode-se
prognosticar a grande dificuldade de se vencer novo recurso para mandar a ré a
novo júri. Isso dificilmente vai acontecer.
Ironia
do destino: todas as incertezas, parcialidades e nebulosidades processuais que,
em seu momento, favoreceram o coronel Ubiratan nos seus processos relacionados
com o caso Carandiru acabaram por beneficiar precisamente a pessoa acusada de
ter sido o seu algoz. Voltas que o mundo dá!
Para
aqueles que são amantes do tribunal do júri, sobretudo os jovens advogados,
casos como o de Carla Cepollina são imperdíveis. Suas lições são memoráveis
para a construção do futuro profissional.
*LFG
– Jurista e professor. Fundador da Rede de Ensino LFG. Diretor-presidente do
Instituto Avante Brasil e coeditor do atualidadesdodireito.com.br. Foi Promotor
de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a
2001). Estou no www.professorlfg.com.br.
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