Para
muita gente, a noite de domingo é incômoda por si, pois antecipa uma
nova segunda-feira, e, com ela, uma nova semana de trabalho, marcando
assim o fim do descanso do final de semana – que, para muitos, grupo no
qual me incluo, há muito tempo não é de tanto descanso assim.
Porém,
nem mesmo minha cama, cujo colchão me costuma a servir de refúgio para
os dias mais sombrios, abraçou-me com seu costumeiro conforto. Instalado
nela, acompanhava, pelo celular (este onipresente aparelhinho que, em
troca de nossa escravidão, nos conecta com o mundo) os desdobramentos do
incêndio calamitoso que praticamente acabou com o acervo do Museu
Nacional do Rio de Janeiro, um dos maiores em mais importantes museus de
história nacional e ciências das Américas. Foi uma noite de
sobressaltos e pesadelos.
Ao
olhar para as imagens das chamas lambendo o que restara da bicentenária
construção, não pode deixar de constatar, com tristeza, que aquele fogo
tinha algo muito mais simbólico em seu poder destrutivo. Mais do que o
acervo e as paredes do Museu Nacional ardiam e desfaleciam em fuligem; o
que queimava, e ainda queima, é o próprio Brasil.
O
exercício de abstração me foi inevitável diante da tragédia. O museu
que é consumido pelas chamas é o símbolo máximo do país que assiste ao
esfacelamento de suas instituições. A saúde precária, direito de todos,
mas de acesso de ninguém; a educação, que, há muito, em todos os níveis
(do básico ao superior) dança no ritmo do “finge que ensina, eu finjo
que aprendo”, no mais tradicional molejo do jeitinho brasileiro de
dourar a pílula em vez de resultar de modo sumário os problemas; a
segurança, que passou a ser um direito de quem está do lado de lá da
linha (ou seja, daqueles que infringem as leis), seja um traficante,
protegido pelo seu código de conduta e fuzis, seja de um político,
ministro ou membro da Corte Suprema, protegidos pelos privilégios e pelo
pedestal inacessível em que se instalaram, ao qual nada chega – nem
mesmo os tentáculos da lei (sim, aqui, lei não tem braço, mas, sim,
tentáculos).
Ano
após ano, década após década, revalidamos o nosso elitismo cultural,
diante do qual a produção do que é considerado cultura erudita (ou seja,
pedaços da cultural nacional popular apropriados pelos artistas de
classes mais abastadas) afasta a maioria da população do sabor de
usufruir de sua própria cultura – vista como algo limitado ao usufruto
dos senhores, tal qual no período colonial. O resultado? Um povo que não
se apropria do que é seu, que não luta pela sua cultura, e, por
conseguinte, pela educação e civismo. A cultura, no Brasil, é saboreada
em guetos, enquanto que, à maioria, restam o “popular”, o “de mau
gosto”, “o funesto”.
Voltando
à minha abstração. Triste constatar que o Brasil tornou-se um país em
que nada dá certo. É inevitável pensar nisso. Uma nação para a qual é
impossível ligar A com B, sem que muito se perca em propina e resulte
num projeto final meia-boca, para “inglês ver”. Não é de se estranhar
que, aqui, em terras brazilis, não se consiga preservar o patrimônio
cultural, hora ou outra, vítima de uma tragédia de proporções dantescas
(antes do Museu Nacional, tivemos o Museu da Língua Portuguesa e a
Estação da Luz, em São Paulo). Mal conseguimos cuidar de entregar ao
povo o acesso a necessidades básicas; quanto mais, investir na
manutenção de museus e centros culturais - como se o acesso a cultura
também não fosse parte da construção de um cidadão pleno em seus
direitos.
Ao
mesmo tempo em que se secam as lágrimas pelo incêndio do Museu
Nacional, precipitam-se as acusações. “A responsabilidade é minha, ponho
em quem quiser”. Não é assim que se diz; muitos são os culpados, e,
também, muitos serão os acusados. Governo Federal, Governo do Estado do
Rio, a Universidade e até mesmo o povo, que, como sabemos, não é lá
muito chegado a usufruir de espaços, que, por aqui, chamamos de museus
(Velharia, oras!).
A
morte do Museu Nacional não é a morte de um prédio antigo e de seu
acervo. É mais uma execução bem pensada e planejada de uma teia
administrativa composta por bandidos, que governa para seus iguais e que
tem como finalidade dilapidar os alicerces essenciais para a construção
de uma nação: educação/cultura, segurança, saúde, emprego, temas tão
lembrados em época de eleição por nossos demagogos de plantão.
O Brasil segue ladeira abaixo. O último a sair, apague a luz. Ou, melhor, que varra as cinzas.
Paulo Stucchi é psicanalista e jornalista
Sara Alves - LC - Agência de Comunicação <redacao4@lcagencia.com.br>
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