O agricultor Abelmanto Carneiro de Oliveira, 48 anos, ficou conhecido
através de muita invenção, criatividade e dedicação à sua propriedade.
Ele transformou uma área de pouco mais de 10 hectares num local com
múltiplas maneiras de convivência com o sertão baiano, servindo
atualmente, de laboratório para outros agricultores, estudantes e
pesquisadores do Brasil e do mundo.
No total são quase 16 km que separa a sua propriedade da sede do
município de Riachão do Jacuípe, na Bacia do Jacuípe e a 186 km da
capital baiana, Salvador.
Como um oásis no meio do deserto, a paisagem devastada pelas
queimadas dos grandes latifúndios que servem ao sistema de pasto, muda
na proporção que avançamos, surge uma caatinga verdejante, resultado do
sistema agroflorestal: espécie de reflorestamento com espécies nativas
da caatinga.
Fomos bem recepcionados naquela manhã de domingo em que o sol
brilhava alto e anunciava, segundo o agricultor, pancadas de chuva à
tarde: “o vento também tá soprando do Norte”: contempla o agricultor, se
revelando um observador do tempo e do espaço em que vive.
Abel, como também é conhecido, já tinha feito a ordenha de seu
pequeno rebanho de caprinos e bovinos, regado plantas e ido até a cidade
(Riachão do Jacuípe) apresentar o Programa “Domingo Rural”, na rádio
Jacuípe AM. Para ele o rádio é mais um elo importante com sua
comunidade.
No programa ele fortalece vínculos e socializa conhecimentos que
aprende Brasil à fora, através de cursos e intercâmbios que participa em
Ongs, movimentos sociais, universidades, e demais setores rurais da
sociedade civil organizada.
As participações dos ouvintes vão de perguntas sobre como combater
formigas e pragas em plantas, técnicas de criações de animais, manejos
do solo e outras diversidades do mundo rural. “Eu ouço todos os
domingos, não arredo o pé do rádio enquanto Abel não dá o adeus final”,
fala sorridente, dona Francisca Carneiro, 66 anos, ouvinte assídua.
O apicultor
No meio da conversa, fomos interrompidos: -Ele chegou! Avisou Jacira
de Oliveira, 48, esposa de Abelmanto. Era Gean Carlos Cordeiro, jovem de
33 anos e morador da comunidade de Mucambo, a quase 2 quilômetros da
casa do agricultor. Naquele domingo, Gean foi aprender o ofício de
apicultor.
“Vocês querem vir também”? Nos convida Abel, que precisava assumir
mais um de seus compromissos com a comunidade. “É muito comum baterem à
nossa porta em busca de apoio para os diversos tipos de lida no campo.
Fazemos isso com prazer e gratuitamente, cobramos só o custo da viagem,
quando a propriedade é muito distante, em outras comunidades”, justifica
Abel.
Abel intercala as dicas para o aprendiz Gean, com “causos” rápidos,
rompendo o silêncio para quebrar nossa tensão de marinheiros de primeira
viagem. Depois de colhido, o mel é transportado por dois carrinhos de
mão e ainda dentro dos favos (capas). No centro de processamento dos
produtos da agricultura familiar, em um espaço bastante higienizado, os
favos são desencapados e colocados no centrifugador para tirar a
primeira etapa do líquido, ou seja, o de maior qualidade.
Além de também aproveitar a própolis, a cera é pesada e trocada em
fábricas de Feira de Santana por capas artificiais para usar como
divisórias dentro das novas colmeias. “Aqui não perdemos nada, tudo é
transformado, quando não é vendido, geralmente fazemos a troca
solidária”, explica. Sobre este tipo de troca, Abel nos deu outro
exemplo: “estava sem tempo de produzir o queijo, então passei a trocar
por leite com um produtor da comunidade. Além do leite, agora não falta
queijo em minha mesa, agricultura familiar também é solidariedade”,
completa.
De volta à varanda da Casa do agricultor
Após um copo de água trazido por Maria Clara, 12 anos, e única filha
de Abel e Jacira, a conversa é reiniciada. Câmeras e gravadores já se
tornaram comuns na rotina de Abel. “Na semana passada tivemos a visita
da TVE”, lembra.
Considerado por Ongs, universidades, e movimentos comunitários como
um agricultor familiar que tem se destacado pelo protagonismo criativo
em todo o semiárido nordestino (modesto) ele diz que é apenas um matuto
que aprendeu a viver no próprio lugar: “O que mais me alegra é saber que
nossa tecnologia também melhora a vida de nossa comunidade”, considera.
Sobre conviver com o semiárido, o agricultor diz que tudo começa com a
vontade de ser feliz onde nasceu, da paixão e afeto pelas raízes. “Com o
passar do tempo, a gente descobre que viver bem no sertão não é
impossível e só com a mudança do olhar sobre o semiárido é que tudo muda
e passa a ser viável.”.
Projeto de Educação Ambiental Vida do Solo e Desenvolvimento Sustentável
Foi observando a gradativa devastação das caatingas da região que
Abel e sua comunidade criaram o Projeto de Educação Ambiental Vida do
Solo pensando no reflorestamento e manutenção da caatinga. A propriedade
possui um viveiro com 22 espécies de plantas nativas que estão quase em
extinção como a Barriguda, mulungu, moringa, umburana, aroeira e outras
a completarem o ciclo para serem replantadas.
No sítio de Marcolino Pitanga, 54, uns 2 quilômetros da propriedade
de Abel, uma experiência do sistema agroflorestal comprova a importância
do Projeto Educação Ambiental Vida do Solo e do protagonismo de
Abelmanto para a sua Comunidade. “Vocês querem saber quem é Abelmanto?
Então vamos em minha casa ver o que esse homem tem feito”, diz
Marcolino, demonstrando gratidão ao amigo.
O Projeto Vida do Solo além de desenvolver, com a supervisão de Abel,
a Oleicultura, já plantou em volta da casa de Marcolino, 14 mudas
(adultas) de umbuzeiros associados à palmas e acerolas. Com a supervisão
do Projeto, Marcolino conta que construiu um berçário de umbuzeiros,
uma espécie de banco de mudas para replantar a espécie nativa em toda a
sua propriedade. No berço, mais de 50 mudas esperam a fase adulta para
serem replantadas em toda a propriedade:
“Temos como finalidade aumentar os pés de umbuzeiros para a
manutenção da vegetação, mas também pensando em nossa produção de polpa
de umbu que já fazemos em parceria com o Projeto Vida do Solo”, explica o
popular, Marcula.
Participam do Projeto 28 famílias das comunidades próximas de Mucambo
e Sítio Novo. Ambas recebem uma variedade de cursos e formações. Um dos
cursos trabalha com Educação contextualizada para crianças, em parceria
com algumas escolas e com o Projeto CAT (Conhecer, Analisar e
Transformar).Uma vez por semana, elas entram em contato com temas sobre
cidadania, preservação ambiental e desenvolvimento sustentável, tudo
isso, em contato com a natureza.
“Materiais como plástico, papelão, vidro e alumínio são recolhidos na
comunidade e vendidos para uma cooperativa de reciclagem de Riachão. O
dinheiro ajuda a manter as ações na propriedade com lanche e almoço para
as crianças, além de material de apoio para as atividades”, garante
Abelmanto Carneiro, na condição de coordenador do Projeto.
Garrafas pets viram bomba d’água, liquidificador manual, aquecedor de
água e artesanato no próprio sítio. “Para nós, a maior importância é
que ele nos incentiva a conhecer melhor nosso próprio espaço e a viver
no campo feliz com a nossa realidade”, lembra Evilaine Cunha Reis, 14
anos, estudante e ex-estagiária do Projeto Vida do Solo.
Geração de Emprego e renda
O Projeto de Educação Ambiental Vida do Solo é também responsável por
articular um grupo de produção dentro da comunidade apoiando as
iniciativas de produtores e produtoras rurais. Através da produção de
polpas de frutas da região, como umbu, acerola, tamarindo, caju, cajá,
manga e outras resistentes ao clima, eles participam de várias etapas do
processo. Muitos escolhem apenas colher o fruto, ensacar e vender ao
grupo de produção, mas, a maioria participa de todo o processo gerando
mais renda à toda a família.
O empoderamento das mulheres da comunidade é visível, em dias de
visitas na propriedade elas expõem seus produtos para venderem, cada uma
ao seu modo. Os produtos vão de compotas de frutas, doces de cortes,
geleias, à brincos, colares e bordados. A geração de maior renda é
garantida nestes dias de mais necessidade de colaborações para atenderem
as demandas dos visitantes.
“Abel é um homem de muitas invencionices” (Marcolino Pitanga)
Dentre muitas, uma das principais criações de Abelmanto é a bomba
malhação, criada inicialmente, para irrigar hortaliças. Ao impulsionar
com as mãos a bomba ganha pressão e eleva água para os canos através de
canetas que servem de hastes circulatórias jorrando água para o raio de
toda a plantação. A bomba é fabricada, basicamente, com garrafas pet,
canetas bic, e canos. Com o sucesso da bomba malhação (nome dado por
exercitar os membros superiores de quem as utiliza) o agricultor passou a
receber diversas encomendas, inclusive da África, para onde enviou
algumas. “Abel é um homem de muitas invencionices”, interfere o amigo
Marcolino, enquanto o agricultor apresenta a bomba para um grupo de
estudantes.
Abel produz outros tipos de bombas manuais para o uso de nutrientes
em plantas, construiu barragens criativas e até o sistema sanitário e de
reaproveitamento de água de sua residência, inclusive, aprovado pela
especialista em saneamento básico rural do Instituto Federal Baiano (IF
Baiano) a doutoranda em Meio Ambiente e Desenvolvimento, Maria
Auxiliadora.
As notícias sobre as invenções do agricultor repercutiram bastante,
chegando a grandes centros a partir da própria imprensa que o tornou
ligeiramente conhecido no Brasil, e em especial, no semiárido
nordestino. Por conta das inúmeras visitas, sua propriedade foi
transformada em uma espécie de laboratório a céu aberto para
agricultores, pesquisadores, Ongs, cooperativas, universidades, e demais
interessados nas técnicas criadas pelo agricultor, sejam desenvolvidas
e/ou adaptadas por ele.
Para o inventor Abel, na confecção de suas criações, o verbo
principal é viabilizar, viabilizar tudo que facilite a vida do homem do
semiárido. Atraídos pela fama da propriedade e suas inovações,
pesquisadores de quase todos os estados do Brasil, e até de outros
países visitam a propriedade para conferirem as invenções criativas no
próprio laboratório a céu aberto do agricultor.
O espaço já recebeu pesquisadores da África, das Américas, como os
Estados Unidos e também de países da Europa. Mas, rotina mesmo, são as
incontáveis comitivas de estudantes e pesquisadores do semiárido
nordestino.
“A propriedade de Abelmanto tem uma ressignificação de convivência
com o semiárido de extrema importância, porque a partir das experiências
que ele desenvolve dentro do contexto do semiárido ele só fortalece a
nossa identidade, desmistificando elementos que venham estereotipar a
nossa região, especialmente, o sertão e a caatinga”, defende Maria
Auxiliadora,professora e coordenadora do Núcleo de Estudos em
Agroecologia do IF Baiano (Campus Serrinha)que ganhou em 2015 o nome de
Abelmanto Carneiro de Oliveira.
Abel e sua relação com a água
No mínimo dois fatos curiosos marcam a relação desse sertanejo com a
água. Primeiro, a pouco mais de dois quilômetros de sua casa, a natureza
exibe um açude com uma boa extensão de água doce. Segundo, este mesmo
açude contrasta com a falta de água encanada pela rede da EMBASA-
(Empresa Baiana de Água e Saneamento) nas residências de Abel e
vizinhança.
O custo para canalizar água da represa sairia caro demais para eles.
No caso da EMBASA, embora a rede passe perto das propriedades, eles não
contam com água encanada, o motivo, seja da empresa, seja de políticos
da região, ainda é desconhecido por Abel e comunidade.
Apesar destas condições, somadas à falta de chuvas regulares no
semiárido, o agricultor desafia a própria realidade. Atualmente ele
reserva em sua propriedade quase 7 milhões de litros de água da chuva.
Barreiros trincheiras, cisternas calçadão, barragens subterrâneas,
tanques e outras formas de reservas garantem água para consumo humano,
animal e plantações o ano inteiro, em especial, em tempos de estiagem.
O agricultor reconhece a facilidade que os governos federais à época
deram com a criação de Programas como o P1+2 em parcerias com movimentos
sociais organizados como a ASA (Articulação com o Semiárido) para a
aquisição destas cisternas e formações para ele e sua comunidade saberem
reservar o líquido em tempos de chuvas. Sobre estas e outras políticas
públicas dos governos anteriores ele diz que as mesmas foram resultados
do protagonismo que foi dado ao sertanejo.
“Foi um conjunto de fatores que em parceria com a sociedade civil
organizada sinalizaram as reais necessidades do homem do semiárido.
Estas políticas públicas foram capazes de me fazer acreditar ainda mais
que aqui é um lugar bom pra se viver, com criatividade, estocagem de
água e de alimentos”.
A propriedade e suas inovações
Abel construiu, recentemente e com recursos próprios, o Centro de
Formação João Pitanga (homenagem ao seu pai) que serve às comunidades
mais próximas com formações sócio educativas, culturais e políticas, mas
também para visitantes e pesquisadores que vêm de longe.
O protagonismo de Abel provoca desenvolvimento regional e tem lhe
tornado em um agente transformador de realidades. O Centro é também mais
um espaço físico para o processamento adequado dos produtos da
Agricultura Familiar, além de alojamento com banheiros para os
visitantes que desejam ficar mais dias na “propriedade laboratório”.
“Aqui a juventude sempre solicita e nós cedemos para rodas de
capoeiras, ensaios de quadrilhas e outras atividades de nossa
comunidade”, lembra Abelmanto que se diz satisfeito em ver sua
propriedade sempre em movimento.
Mesmo muito ocupado, Abel está sempre com um largo sorriso no rosto e
nunca reclama de cansaço. Atende à todos com igual atenção e prazer.
Muitas pessoas não entendem como ele consegue dar conta de tantas
atribuições e com tanto bom humor. Mas ele compreende muito bem o porquê
de sua alegria, sua paixão e persistência com o seu lugar. Encerrando a
nossa conversa, Abel se emociona ao falar de seu protagonismo enquanto
ser humano: “colaborador para um mundo melhor”, diz.
De agricultor à missão de agente multiplicador da convivência
criativa com o semiárido, Abel diz que tudo começa com a necessidade de
sobreviver, seguida da necessidade de transformar o olhar sobre o
sertão, “Só depois, a gente passa a viver melhor nele”, finaliza.
Por: Laura Ferreira / Do CN
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