A amplitude e complexidade do Sistema Único de Saúde
(SUS) está presente no dia a dia das pessoas, mesmo que elas não se deem
conta. Seja na água que consomem, nos restaurantes que frequentam, nos
supermercados e farmácias em que fazem compras, em salões de beleza e
barbearias... diversos serviços são regulados e estão sob influência
direta do sistema público de saúde do Brasil.
Esse desconhecimento, mesmo passadas quase três décadas desde
a implementação, faz com que as pessoas não deem a devida importância e
não defendam o SUS da maneira que deveriam, na opinião do médico
Washington Abreu, coordenador de Medicina de Família e Comunidade e do
programa de Residência Médica da FTC. “Se a gente não defende é porque
não acredita ou não conhece a sua potência”, analisou o médico ao
apontar esta como uma das razões das dificuldades operacionais
enfrentadas pelo sistema.
O papel do SUS, que chega aos 29 anos nesta quinta-feira
(19), vai além dos atendimentos nos postos de saúde e hospitais. Cabe a
ele ações de vigilância sanitária, que permitem o funcionamento de
estabelecimentos como restaurantes, farmácias, hospitais e clínicas; os
planos de saúde; os prazos de validade dos produtos nos supermercados; e
até as determinações e exigências de esterilização de equipamentos nos
salões de beleza.
“O SUS conceitualmente é um sistema de saúde, entretanto ele
não é só de prestação de serviço”, disse Washington. O médico lamentou
que pelo fato das ações mais comuns do Sistema estarem centradas em
unidades de saúde, “com seus problemas operacionais”, eles acabem tendo
mais visibilidade que outras ações.
Representante da Bahia no Conselho Federal de Medicina e
integrante da Comissão Nacional Pró-SUS, Otávio Marambaia enfatizou a
importância da sociedade entender a propriedade dessa estrutura, que
como um sistema público pertence a toda a população. “O SUS não é um
favor e não faz atendimento gratuito, faz atendimento. As pessoas são
pouco conscientes daqueles benefícios que elas já têm providos pelo
SUS”, disse Marambaia.
MÁ GESTÃO X ESCASSEZ DE INVESTIMENTOS E RECURSOS
Os dois médicos apontaram a escassez de recursos como uma das
grandes deficiências enfrentadas pelo SUS. “Quando se constituiu o
Sistema Público não veio junto com ele um projeto robusto de
financiamento que permitisse que ele crescesse com sustentabilidade para
substituir o modelo que existia antes. Não temos recursos necessários
para prover”, avaliou Washington Abreu.
Para Marambaia, o “sonho” que deu origem ao Sistema Único
“não se lembrou do financiamento”. “É um defeito congênito, ele já
nasceu com uma proposta universalista, de propiciar saúde a todos, mas
não previu nem proveu fontes de financiamento, recursos. Essa situação
persiste até hoje, temos um sistema muito bem bolado, articulado, mas
que em vários aspectos não funciona”, lamentou o médico.
O conselheiro do CFM foi mais abrangente e, além de citar a
deficiência de recursos, apontou problemas políticos e de má gestão
também como agravantes. “Desvios e inexistência de recursos ocorrem ou
concorrem para as dificuldades”, reconheceu. “Além do uso politico
eleitoreiro do Sistema Público de Saúde, ele deve ser usado pela
população”, denunciou Marambaia.
Enquanto isso, Abreu defendeu a eficiência dos órgãos de
controle, auditoria e regulamentação para argumentar que “afirmar que há
desvios [de recursos] é uma coisa difícil”. Mas ele concorda quanto à
existência de falhas de gestão que acabam por potencializar as
deficiências enfrentadas. “Alguns gestores em alguns lugares acabam por
limitar a disponibilidade de recursos e dificultam que o sistema
funcione na plenitude”, disse o especialista em Medicina de Família e
Comunidade, que ainda destacou a complexidade e consequente “carestia”
de manutenção.
CONSTITUIÇÃO DE 88: GARANTIR É GARANTIA DE DIREITOS?
A Reforma Sanitária Brasileira, de onde nasceu o SUS, foi um
conjunto de ideias que se tinha em relação às mudanças e transformações
necessárias na área da saúde, visando a melhoria das condições de vida
da população. O Sistema Único de Saúde surgiu como um resultado de um
processo desenvolvido por duas décadas e ganhou um capítulo na
Constituição Federal de 1988 que determina que "a saúde é direito de
todos e dever do Estado".
Mas a judicialização do direito à saúde, previsto na Carta Magna,
acaba por ocasionar “tremendas injustiças” na análise do membro da
Comissão Nacional Pró-SUS. Marambaia acredita que a garantia, que
deveria beneficiar a maior parte da população, privilegia aqueles que já
são privilegiados por poderem recorrer à Justiça e cobrar por
tratamentos. “Através da judicialização se financia e privilegia
atendimentos complexos e sofisticados, quase que elitistas, para poucos
que podem se servir do Judiciário para isso, e tem milhares ou talvez
milhões com dificuldade de acesso a procedimentos de média complexidade
porque não há verba para esses procedimentos”, argumentou o médico.
Marambaia ainda citou como exemplo os casos em que pessoas
ganham processos na Justiça que obrigam o Estado a cobrir medicações de
alto custo e procedimentos cirúrgicos experimentais.
RETROCESSO
Apesar das inúmeras dificuldades e deficiências do Sistema
apontadas pelos médicos, eles não veem possibilidades de retrocessos ou
de fim do SUS. A estrutura do sistema hoje acaba sendo uma garantia, na
visão de Marambaia. Mas o profissional alertou para a necessidade de
aprimoramento nos controles de gestão, busca da competência e
produtividade, e do modo como os recursos são aplicados.
Já Washington Abreu destacou a consolidação do sistema e a
presença na Constituição como fatos que enfraqueçam essa tese.
“Instituiu-se um sistema para todos, com seus problemas, mas que hoje é
dito e conhecido como o maior sistema público de saúde do mundo. Existem
outros sistemas públicos, até com maior condição financeira, mas não
tão vultuosos quando o do Brasil”, assegurou Abreu. Vale lembrar que o
SUS é referência no mundo em cobertura vacinal, transplantes e
tratamento do HIV/Aids, entre outros serviços.
Washington destacou que o que existem são ameaças à
operacionalização, à medida que, principalmente no financiamento,
pensa-se que a solução é uma adesão em massa à iniciativa privada. “A
iniciativa privada, que pela lei é complementar ao sistema, é livre para
exploração. Porém, não se deve substituir o SUS pelo privado. Se assim a
gente pensa, tem ameaças do ponto de vista da organização do sistema”,
complementou, acrescentando que o fim o SUS seria um descumprimento da
Carta Magna.
Por Jade Coelho / Bahia Notícias
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