Em ação civil pública ajuizada em Porto Alegre (RS), o Ministério
Público Federal acusou o presidente Jair Bolsonaro (PSL) de cometer
"desvio de finalidade" ao destituir e nomear, no final de julho, quatro
membros da comissão do governo federal responsável por reconhecer crimes
do Estado e localizar corpos de militantes de esquerda desaparecidos
durante a ditadura militar (1964-1985).
O MPF afirma que o decreto da substituição teve "vícios insanáveis",
como "motivação deficiente e inobservância do procedimento exigido para o
ato". Em 29 de julho, incomodado com a ação institucional da OAB (Ordem
dos Advogados do Brasil) em defesa das prerrogativas profissionais do
advogado de Adélio Bispo de Oliveira (um portador de transtorno mental
que tentou matar o então candidato à Presidência em setembro do ano
passado), Bolsonaro atacou o presidente da Ordem, Felipe Santa Cruz.
Ele disse que o pai de Felipe, Fernando, integrou "o grupo mais
sanguinário e violento da guerrilha lá de Pernambuco" e afirmou que
detinha informações sobre o paradeiro dele. Fernando, militante da
oposição à ditadura, em 1974 foi sequestrado por agentes da repressão e
permanece desaparecido desde então. De acordo com a Comissão Nacional da
Verdade (CNV), ele morreu sob tortura dias depois de sua prisão. Não
havia nenhuma acusação de que ele tivesse participado de qualquer ato
terrorista.
Em reação à afirmação de Bolsonaro, no mesmo dia 29 a então presidente
da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP),
vinculada ao Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, a
procuradora da República Eugênia Gonzaga, solicitou à Presidência que
revelasse que informações o presidente detinha sobre o paradeiro de
Fernando.
Um dia depois, Bolsonaro destituiu quatro dos sete membros da comissão,
incluindo a procuradora da República. Entre os quatro nomeados estavam
um deputado do PSL do Paraná, Filipe Barros, que elogiou o golpe militar
de 1964, um coronel reformado do Exército, Weslei Antônio Maretti, que
chamou de "exemplo" um dos principais acusados de torturas e
assassinatos na ditadura, e outro filiado ao PSL, Marco Vinicius Pereira
de Carvalho.
O Ministério Público Federal ajuizou a ação civil pública na 3ª Vara
Federal de Porto Alegre nesta segunda-feira (30). Ele pede a anulação do
decreto presidencial das nomeações, o que as tornaria também nulas, e a
declaração de nulidade de todos os atos praticados pelos novos membros
da comissão desde a posse.
Na petição, os procuradores mencionam uma entrevista concedida por
Bolsonaro em 1º de agosto. Quando indagado sobre a razão pela qual
decidiu trocar os membros da comissão, Bolsonaro respondeu: "O motivo é
que mudou o presidente, agora é o Jair Bolsonaro, de direita. Quando
eles botavam terrorista lá, ninguém falava nada. Agora mudou o
presidente. Igual mudou a questão ambiental também”.
Os procuradores apontaram na ação civil que o processo administrativo
para a troca dos membros da comissão estava parado desde maio e só
voltou a andar no mesmo dia 29 de julho em que a então presidente da
comissão cobrou, em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, explicações
da Presidência sobre o paradeiro de Fernando Santa Cruz.
"Há inegável desvio de finalidade no decreto presidencial porque o
objetivo revelado pelo Chefe do Poder Executivo, em entrevista concedida
no último dia 1º de agosto, é incompatível com as finalidades
específicas buscadas pela comissão, as quais, como se viu, transcendem a
divisão do mundo entre direita e esquerda", diz a petição subscrita
pelos procuradores Enrico Rodrigues de Freitas, Sergio Suiama e Ana
Padilha de Oliveira, lotados no Rio de Janeiro e no Rio Grande do Sul.
"O trabalho desenvolvido pela comissão, desta forma, nada tem de
ideológico, pois visa, antes de mais nada, atender a um mandamento
constitucional, legal e ético, consistente na busca pelo paradeiro de
desaparecidos em razão de atos cometidos pelo próprio Estado brasileiro
durante o último regime de exceção", diz a ação civil pública.
Os procuradores atacam o argumento do Ministério da Mulher e que as
nomeações são "um ato administrativo discricionário do chefe do Poder
Executivo, segundo seus critérios de oportunidade e conveniência".
Segundo eles, a natureza do ato "não elimina nem exclui o controle
jurisdicional da legalidade do ato". "Como é sabido, há desvio de
finalidade ou de poder quando o agente afasta-se da finalidade que
deveria atingir para alcançar resultado diverso, não amparado pela lei",
diz a ação civil.
Os procuradores apontam que: "inexiste nos autos do processo
administrativo justificativa específica para a escolha dos nomes dos
membros substitutos indicados" e a nomeação do deputado Filipe Barros
"não é válida, pois a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos
Deputados, titular da vaga, não foi consultada pela Presidência da
República" para que indicasse o nome.
Os procuradores pontuaram ainda que os currículos dos novos integrantes
"não foram apresentados" e não constam do processo administrativo
encaminhado ao Ministério Público Federal pelo Ministério da Mulher. De
acordo com os procuradores, a CNV concluiu que "das 243 vítimas de
desaparecimento forçado durante a ditadura militar no Brasil, apenas 33
delas tiveram seus corpos identificados". Assim, os trabalhos da
comissão devem continuar para localizar e indicar o que houve com os
outros desaparecidos.
Os procuradores ressaltam que a comissão não foi criada apenas por
iniciativa do Executivo, em lei desde 1995, mas também como atendimento a
uma decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, sediada na
Costa Rica. "O Estado brasileiro tem, com efeito, o dever de promover a
busca por desaparecidos políticos e das pessoas que, por terem
participado, ou por terem sido acusadas de participação, em atividades
políticas, tenham falecido por causas não naturais ou cometido suicídio.
Atualmente, o único órgão do Estado brasileiro cujas finalidades
incluem esta difícil temática é a CEMDP [comissão]", dizem os
procuradores.
Procurado pela reportagem, o Ministério da Mulher, Família e Direitos
Humanos informou que "o pedido [de informações] deve ser direcionado
para a Advocacia-Geral da União".
Por Rubens Valente | Folhapress / Extraída do BN
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