A festa dura cerca de três horas, mas mobiliza a população da cidade por
quase todo ano. A pequena Ichu, encravada no semiárido baiano, a 180 km de
Salvador (BA), tem sérios problemas de saneamento – só 1,2% dos domicílios têm
esgotamento sanitário adequado -; poucos empregos – 6,8% da população estimada
em 6.194 habitantes estão empregados; e o seu sistema de saúde precisa melhorar
muito. No entanto, há 91 anos, durante o novenário do padroeiro Sagrado Coração
de Jesus, a cidade realiza uma das festas mais animadas da Bahia, onde se
destacam o concurso de máscaras, alegorias e carros alegóricos e o desfile de
baianas.
Em mais de nove décadas de história, a Lavagem passou por muitas
transformações. Hoje ela é realizada simbolicamente. Um carro-pipa fica diante
do acesso à igreja, mas não derrama uma gota de líquido sequer. A água, quando
o calor é intenso, é usada para refrescar os foliões. Esse ano, o caminhão não
foi ativado. É que os ichuenses que antes começavam a percorrer às ruas atrás
da fanfarra que tocava marchinhas de carnaval a partir das 14 horas, agora só
deixam suas casas duas horas depois quando o castigo do sol diminui. A banda
Muvuka, que vem de Pé de Serra, faz o mesmo. A temperatura média em fevereiro é
de 32º, mas a sensação térmica é sete graus centígrados maior no início da
tarde.
Ichu
tem pelos menos cinco grupos de foliões e artesãos que produzem máscaras e
alegorias de qualidade para eventos em qualquer estado do país, utilizando
papelão, bandeja de ovo desmanchada e moída no liquidificador, jornal, raízes
de árvores, samambaias da caatinga, espinho de barriguda (árvore catingueira) e
caveiras de animais. Há um grupo tão talentoso que acumula os prêmios pagos
pela Secretaria de Educação – o maior é de R$ 1.500 para os vencedores da
categoria carro alegórico.
Anualmente,
eles concorrem com mais de 100 máscaras feitas para suas equipes e para
terceiros. Incluindo os independentes, a disputa reúne até 150 candidatos. Este
ano, porém, devido ao que consideraram o não cumprimento do regulamento pelos
jurados e a vitória polêmica no quesito alegorias em 2018, houve um boicote dos
participantes e o concurso teve 40 inscritos. No entanto, todos prometem voltar
na próxima Lavagem. Afinal de contas, o esvaziamento do concurso não tirou a
alegria dos foliões. Dezenas usavam fantasias que iam de máscaras de borrachas,
personagens da série Casa de Papel, super-heróis, travestidos e o que você
imaginar.
Outro
fator a ser ressalvado é a segurança da folia, que transcorre sem registros de
violência.
A
ORIGEM
A
primeira festa do padroeiro de Ichu foi realizada em 1928. Dois anos antes foi
iniciada a construção da capela consagrada ao Sagrado Coração de Jesus. Até
então, as missas e celebrações eram realizadas na vila de Candeal, reduto de
protestantes a 10 km de distância. O crescimento da igreja católica incomodou
os evangélicos, que chegaram agredir fiéis no templo e ameaçaram o padre. A
partir daí, ficou decidido que seria construída uma capela na fazenda Enxu.
O
dono da fazenda, Joaquim Lázaro Carneiro, escolheu o padroeiro e mandou trazer
uma imagem de Riachão do Jacuípe, município ao qual Ichu era ligado. Às
vésperas da chegada da escultura, o que ocorreria no dia 7 de fevereiro de
1928, um grupo de moradores das cercanias da fazenda resolveram lavar a capela
recém construída, dando início à “Lavagem da Igreja”.
Naquela
época, homens e crianças foram até uma fonte conhecida como “Loca” buscar água.
Voltaram batendo latas com as mãos e pedaços de madeira. No trajeto, molhavam
uns aos outros e a quem cruzasse o caminho. Enquanto isso, as mulheres ligadas
às famílias tradicionais da região permaneciam na capela lavando e cantando
benditos e cirandas. A brincadeira agradou e se repetiu nos anos seguintes,
sempre no dia 5, abrindo os dias festivos que encerravam o novenário.
No
final da década de 1930, a mulher de um juiz de paz, recém-chegada da então
capital federal, foi morar em Ichu. Dona Zefinha, antiga proprietária da
Fazenda Bom Jardim, importou do Rio de Janeiro um mini carnaval: mulheres
vestidas de baianas, mascarados. Ela se uniu ao festeiro Justiniano Soares
Militão e incrementou a Lavagem da Igreja.
Eles
também convidaram a banda filarmônica Barbeiros, da localidade de Caldeirão,
para animar a lavagem, o que motivou a participação das mulheres. Vestidas de
cigana e fantasias improvisadas, usando colares e pulseiras feita com sementes
de milho, feijão e mucunãs (olho de boi), elas iam encontrar os músicos na
fazenda Cedro, a 1,5 km da atual praça central. No repertório da fanfarra,
marchinhas.
No
final da folia, as mulheres pediam dinheiro aos comerciantes e fazendeiros para
pagar aos integrantes da filarmônica, que continuaria a tocar no sábado
seguinte, durante os batizados e casamentos, além de se apresentar na alvorada,
missa e procissão de domingo.
Os
homens começaram a usar máscaras (caretas) feitas de tecidos velhos, papelão,
galhos de árvores, estopa. Os mais velhos assustavam as crianças, que corriam
chorando e se agarravam nas pernas dos pais, o que ocorre até hoje.
Outra
pessoa que se destacava era José Oliveira Carneiro (Seu Duzinho). Ele
distribuía licores para animar os participantes.
A
festa cresceu. A banda Barbeiros foi substituída pela filarmônica de Tanque
Grande, de Serrinha. As músicas, porém, não mudaram. Quando Dona Zefinha
retornou ao Rio de Janeiro, a festa continuou, mas as baianas, lideradas por
suas filhas, quase acabaram.
Quebrando
preconceito existente à época, pobres, negros e prostitutas se uniram aos
brincantes, mantendo a tradição e dando mais alegria aos festejos. No entanto,
a Igreja proibiu que mascarados entrassem no templo para lavá-lo. Alegou que
eles sujavam o mais que limpavam e que desrespeitavam o templo. Passou-se então
a se lavar apenas a calçada. Com o tempo, a loca foi aterrada. E a água passou
a ser fornecida pela prefeitura.
AS
MÁSCARAS
Quando
foliões de famílias tradicionais deixaram de participar, restaram poucas
crianças e homens vestidos de mulher. Foi o movimento de jovens, apoiados por
professores da cidade que impediram que a tradição das máscaras terminasse. Com
a chegada do padre espanhol Leopoldo Garcia, nos anos 90, a festa passou a ter
uma novidade.
O concurso deu
ânimo novo à lavagem. A princípio surgiram máscaras de monstros, mas a
criatividade falou mais alto e os feiosos deram lugar aos animais e outros
temas criativos. Uma nova geração de campeões apareceu: Didio, Sandro e Pepa
ganharam fama e títulos.
O padre morreu em janeiro de 2003. Se um religioso
incrementou a Lavagem, outro tentou acabar com ela. Padre Roni não era
favorável à manutenção do que considerava uma festa profana, desrespeitosa.
Tentou acabar com ela, além de tomar outras atitudes que irritaram a população,
como aumentar as taxas cemiteriais, elevando o valor cobrado por sepultamentos.
A população resistiu e em 2009, esta parte da
festa incluída no novenário passou a ser administrada pela prefeitura de Ichu.
É o município quem banca as despesas estruturais, a premiação dos concursos, os
gastos de alimentação e estadia dos componentes da banda Muvuka (este ano foram
24 músicos) e dos jurados da competição de máscaras, parte deles de cidades
como Conceição do Coité, Serrinha e Riachão do Jacuípe.
Hoje, a data da festa não é mais fixa no dia 5 de
fevereiro. Passou a ser na sexta-feira mais próxima da data da chegada da
imagem. Há um movimento para uma nova mudança. Boa parte dos artesãos e
moradores defende que a Lavagem passe a ser feita no sábado, último dia da
novena.
“A festa no sábado dobraria a quantidade de
participantes. Sou a favor” – diz o professor Antônio Carlos Modesto, o Pepa,
um dos campeoníssimos do concurso de máscaras.
MINI CARNAVAL
A festa começa
por volta das 16 horas, com a concentração de baianas, crianças mascaradas e
músicos na banda, no Centro de Abastecimento, há duas quadras da Igreja do
Sagrado Coração de Jesus. O trânsito bloqueado no centro não impede que carros
de moradores estacionem no circuito. Apesar de ser feriado municipal, o comércio
funciona normalmente.
O grupo começa o desfile. As baianas neste trecho
estão em maioria. Algumas dão banho de pipoca nos foliões, ritual de religiões
afro-brasileiras que serve para purificação. Tocando antigas marchinhas, o
bloco engrossa quando chega à praça da Igreja. Começam a surgir os primeiros
mascarados. Algumas máscaras são pesadas e quentes, por isso os candidatos que
serão avaliados no trajeto pelos jurados são assistidos por amigos e vizinhos
que lhe dão água. Ao grupo se misturam jovens fantasiados. Este ano o número de
máscaras diminuiu graças ao boicote feito por alguns grupos insatisfeitos com a
premiação do ano anterior. As categorias alegorias e carros alegóricos foram as
mais prejudicadas. Tiveram apenas dois e um concorrente, respectivamente.
Falaremos do boicote em outra reportagem.
Após duas voltas pelas praças principal e
secundária da cidade, a banda se dirige ao Barracão Municipal, espaço onde
ocorre uma espécie de baile carnavalesco. Neste momento, por volta das 16h30,
as máscaras mais bonitas e elaboradas surgem. Quando deixam o local para nova
volta pela praça, é a vez das alegorias aparecerem. Diferente das máscaras, as
alegorias podem ter efeitos especiais.
Na etapa seguinte, a banda se dirige para o palco
em frente à igreja. Lá, ficará tocando até às 18 horas, quando começam a ser
divulgados os resultados dos concursos. Atualmente, as baianas não entram em
disputa. A Secretaria Municipal de Educação e Cultura, responsável pela festa,
sorteia eletrodomésticos, material escolar e pranchas de cabelo para as
participantes. São nove prêmios, três para cada categoria – infantil, juvenil e
adulta.
Em seguida, é a vez de anunciar os vencedores. Nas
categorias de máscara, o grupo Nova Geração ganha os principais prêmios. O
maior, adulto, é de R$ 1.200. O dinheiro será usado para uma festa de
confraternização com os integrantes.
A turma de Henrique Sanches leva o primeiro lugar
com uma carroça alegórica feita às pressas, na qual mistura duende e monstro.
Foi o único inscrito. Fraedson faturou o prêmio principal de alegoria, com um
gigantesco elefante que trazia na barriga um homem enjaulado.
Ao fim da premiação, os moradores começam a se
dispersar. Alguns ficam em torno de paredões instalados em carros, ouvindo
músicas como Prostituta, de Pepe Moreno.
“Estou gostando de uma prostituta. Ela é linda,
ela é puta. Tô de rolê com a prostituta. Que gata! Ai que puta!” – grita o
cantor do risca faca.
A maior parte dos foliões vai para casa trocar de
roupa porque a missa do oitavo dia do novenário começará às 20h30.
Por Paulo Oliveira
(paulo@meussertoes.com.br)
Fonte: Meus Sertões
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