A cidade de Serrinha, terra da vaquejada, a maior do Brasil, é também
rica em outras várias tradições. Na Semana Santa, por exemplo, revive a
saga de Jesus e sua crucificação, em evento que atrai fiéis do Brasil
inteiro.
O poeta Teco (à esquerda) ao lado dos amigos Valdomiro e Carlos |
Em cada um deles, uma história, marcada na memória dos serrinhenses por
sua singularidade. Alguns já se foram, restando deles apenas as
lembranças. Outros seguem, como Eliseu, destaque na imprensa da Bahia e
alvo de reportagem do Acorda Cidade, no fim de 2019, por ter tirado
férias pela primeira vez na vida, após mais de 40 anos de batente em seu
estabelecimento que se tornou famoso na avenida Manoel Novaes.
A lista de comerciantes vitoriosos e que chamam a atenção da comunidade
serrinhense não para de crescer. Um dos que estão se integrando a seleta
relação de empreendedores que atingem o imaginário popular é Teco, o rei
do boteco.
Batizado Hariélio Carvalho, o filho de seu Arivado e dona Helena
tornou-se personalidade, em Serrinha, por seu jeito inconfundível de
atender, em quase um quarto de século vendendo cerveja.
O "Boteco do Teco", localizado distante da Morena Bela, point do
entretenimento local, não é mais que um pequeno prédio, anexo da
residência onde mora com a esposa e fiel escudeira no negócio, a
faz-tudo Célia. Um pequeno ponto, mas... só que não. Ninguém tem mais
clientes do que ele, na cidade.
- É um cara sensacional, que atende sempre com um sorriso, um bom papo.
Além de oferecer qualidade e ótimo preço. Serrinha inteira vem aqui no
boteco comprar cerveja e prosear com ele - comenta o cliente fiel e
amigo Geovani, dos raros em quem Teco confia vender fiado.
O sucesso é tamanho que o negócio está virando griffe. Os próprios
filhos William e Hariel, criaram o Empório Serrinha. É um estilo de
negócio diferente, especializado em cerveja artesanal. Mas a receita
para atrair uma clientela fiel tem o "made in" Boteco do Teco. Os filhos
seguem os passos do pai.
Faz da vida uma piada
Teco é um sujeito muito alegre, que atende ao freguês sempre com o
cabelo de índio mal penteado e proeminente barba, meio esbranquiçada
pelos seus 58 anos bem vividos. O ex-lateral direito meio técnico, meio
grosso, do futebol de várzea no bairro Rodagem, onde passou infância e
adolescência, tem coração dividido: na Bahia rubro-negro (Vitória), no
Rio alvi-negro (Botafogo). Seus amigos não sabem como ele consegue
manter o humor, torcendo por dois times de tamanha aridez de títulos
importantes.
Como atesta Zé Durval, amigo de muitos anos, mas cliente novo na casa,
fazer piada de quase tudo é a forma com que Teco enfrenta as
dificuldades - desde as derrotas dos seus dois times aos problemas
econômicos e políticos no país que tanto lhe incomodam. É ferrenho
crítico de gestões desatentas com o povo carente. Até já pensou em
disputar a vereança, projeto que abortou no nascedouro.
"Seu Teco", como é também conhecido, nao é apenas um grande vendedor de
cervejas. Também tem talento artístico, aflorado ainda em sua juventude,
quando contemplava seus amigos mais próximos com cartões de boas festas
personalizados. Jamais comprava um em livraria. As mensagens eram
feitas de próprio punho, o que encantava a todos os que as recebiam dias
antes do Natal.
Mas é na poesia e no poema, que Teco se realiza de verdade. Este, aliás,
era o recurso mais proativo, em seus tempos de conquistador. Não foram
poucas as meninas dos anos 70 que se encantaram por seus românticos
escritos. Nos tempos em que a carta era um importante meio de se dirigir
a uma garota (geralmente um amigo fazia a entrega da
"correspondência"), o galanteador Hariélio raramente perdia uma cantada,
que executava com a sua caneta, quase nunca usando a voz.
"Ele gastava muita tinta de caneta para escrever páginas e mais páginas
de poemas, quando se encontrava apaixonado", relembra Berguinho, grande
amigo de infância. Quando não era correspondido, ou ao levar um fora,
mais ainda florescia a criatividade e a vontade de escrever, atesta o
amigo-irmão.
Raimundinho, outro amigo de adolescência e seu colega no Ginásio Rubem
Nogueira, diz que já atuou como "revisor" de poemas do Seu Teco. Certa
feita, o sedutor poeta escreveu três páginas do caderno espiral para a
irmã de uma estudante, por quem ele se apaixonou. Tanta intensidade não
sensibilizou a jovem. "Ele sofreu muito", relembra o "auxiliar", hoje
residindo em Brasília.
Gostar de gente, o segredo
Sem dúvida, o jeitão largado e pouco preocupado com as durezas do
cotidiano é o segredo do bom humor quase inabalável do rei do boteco.
"Deixo a vida me levar", diz ele, plagiando o sambista famoso. "Enxergo a
caminhada como um longo e delicioso banho no lindo lago do amor",
acrescenta, outra vez recorrendo a estrofe de uma linda canção.
Sobre o trabalho e o sucesso do Boteco, decifra de forma simples: "basta
gostar de gente. Cada pessoa nova que procura pela minha cerveja é mais
um amigo de prosa que ganho. Quando você faz do seu cliente uma fonte
de de amizade, com carinho e respeito verdadeiros, atendê-lo se torna um
grande prazer".
O ex-gerente de loja da antiga Cesta do Povo diz que aprendeu ali a
lidar com gente. "A experiência me fez chegar aqui com um espírito ainda
mais voltado ao próximo".
Coronavírus e a saudade
Casado, pai e avô, Teco meio que aposentou a sua Bic azul escrita fina.
Dona Célia, companheira de quase quatro décadas, reclama: "só fez poemas
para mim quando quis me conquistar. Nunca mais". Na verdade, Teco
continua a escrever. Não tanto como antes, mas, vez em quando, ele junta
algo a sua coletânea de centenas de poemas, agora em versão digital.
O comerciante-poeta Hariélio, o Teco, com a esposa, Célia, e a afilhada Karen (centro)
Retrata os diversos cenários do cotidiano, continua um excelente
observador, que consegue reproduzir, em seus poemas, os momentos
marcantes deste nosso tempo tão confuso.
Agora mesmo, deixa o coração falar por ele, ao rascunhar a dor que emana
do peito em razão da pandemia. O coronavírus fez o poeta "sacar a
palavra", com quem sempre troca intimidades, para refletir sobre o
sentimento de milhões de brasileiros, ao mesmo tempo impressionados, ao
mesmo tempo chocados, com o drama em que nos enfronhamos e dele tentamos
nos despir.
Quarentena e saudade, o chorar do boteco
A buzina me chamava
A gritaria, era pelo meu nome
Ah, quanta saudade!
E o buteco em quarentena
Ao fregues que insiste, aprendi a dizer não...
Como antes não sabia...
Tudo por um decreto perverso, em meio à agonia
Tudo por um vírus chamado corona
O seu número, 19, para sempre marcado em minha memória
Uma doença importada, meu senhor!
Que chega até nós por quem tem dinheiro, viaja o mundo...
E daz de todo mundo transmissor
Fui 'mandado' prá dentro de casa
Impedido de fazer o que mais amo
Vivemos mais que um surto, um terrível susto
Maior ainda a saudade dos amigos, a bater no peito
Quanta falta do papo sem compromisso aqui no passeio...
E o que nos resta?
Tanta invenção... o que fazer?!
Tv... Pipocas... é tudo que se faz
Afinal, Quarentena é vontade de comer
Assistir e ver os números crescendo
Saber quantos tem pra morrer!
Ah, agonia danada...
Tantos filmes, séries... nem consigo mais ver
É choque de realidade!
Bateu saudade do meu povo lá de baixo
Do carro antigo, azul, placa de fora
Saudade do bom dia do vizinho...
Saudade do dia a dia, do povo que passa
Saudade da minha cadeira amarela
Esta, minha grande companheira
Saudade das coisas que só eu gosto
Só eu entendo!
Saudade dos que vinham em busca de cervejas
Quantos, aqui, apareciam para "se" abastecer
Saudades do meu cochilo diário
Fechar os olhos e dormir, na porta, sentado
Estou cheio!
Não da família, ela é uma bela companhia
Como enfrentar o costume?
É algo tão forte, desses anos todos...
Abrir todo dia, de domingo a domingo, o divertido buteco
Saudade do sábado e sua feira livre...
Do meu velho, e da minha velha, que não posso visitar
Saudade até das caixas...
Do botar e do tirar
Saudade do povo dos 13...
Do sapinho, que passa para brincar
Do menino catador, por não ter agora nada para lhe dar
Ah, sinto tanta saudade, dá vontade de chorar...
Fico por aqui, pois sao 23 e três anos de estórias pra contar
Até a quarentena acabar
Da minha afilhada Aly, a frase de terminar:
Você é velho. Fique no seu lugar!
harielioteco1@gmail.com
Valdomiro Silva
Especial para o Acorda Cidade
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