Dois projetos dos Legislativos estadual e de Salvador propõem
a criação de espaços que contestem a exaltação a figuras escravocratas e
de traficantes de escravos. Os pleitos contrapõem a narrativa vitoriosa
que resultou na edificação de bustos e monumentos públicos e lançam luz
sobre um debate mundial em torno da legitimidade de tais homenagens.
Estátua do Conde de Pereira Marinho, em Salvador |
Uma das proposições é o Projeto de Indicação da vereadora
Marta Rodrigues (PT), que pede ao prefeito de Salvador, ACM Neto (DEM), a
criação de um memorial sobre a regime escravocrata. O intuito do local,
segundo a edil, seria a promoção da valorização da luta de homens e
mulheres negros pelo fim da escravidão no país. "[Com a implantação do
espaço] se promoverá a valorização do legado de resistência das pessoas
negra e negros, africanos e seus descendentes, afetados pela escravidão
no Brasil, de maneira a promover o direito à verdade e à memória da
cidade de Salvador", explicou Marta Rodrigues. O local também exporia,
conforme aponta a ideia submetida à Câmara de Vereadores, os algozes.
O outro projeto em questão é do deputado estadual Hilton
Coelho (PSOL). Ele propôs, no final de junho deste ano, um Projeto de
Lei que determine a retirada de estátuas, monumentos, placas e outras
formas de homenagem a pessoas que estiveram ligadas ao comércio de
escravos que estejam em prédios e espaços públicos em todo o estado.
A ideia do PL de Hilton é que uma comissão de pesquisadores
defina quais monumentos devem ser retirados. Além disso, ele pede que
tais homenagens sejam alocadas em um espaço museal a ser construído na
região portuária da capital baiana, o "Museu da História da Escravidão e
Invenção da Liberdade".
"Precisamos desnaturalizar um conjunto de referências que são
racistas e que historicamente nasceram a partir do período colonial e,
principalmente, influenciados pela questão da escravidão. É preciso
fazer um enfrentamento a esse racismo estrutural que tem raízes que só
conseguem naturalizar um conjunto de conceitos que estão aí oprimindo
uma grande maioria da nossa população porque tem uma larga trajetória
histórica e uma fundamentação muito bem amarrada, apesar de
completamente afastada da realidade", elenca o deputado ao Bahia
Notícias, argumentando sobre a representatividade de Salvador como a
capital mais negra fora do continente africano.
Sob esse mesmo aspecto, Marta Rodrigues comenta que a criação
de um memorial é uma demanda antiga do movimento negro pela urgência de
evidenciar figuras negras importantes na historiografia nacional.
"Temos na nossa história diversos nomes de pessoas escravizadas que
estão relegadas ao esquecimento, são poucos os que são realmente
conhecidos e conhecidas, como Dandara, Zumbi dos Palmares, Maria Firmina
dos Reis, Adelina, Carolina Maria de Jesus e Dragão do Mar".
Estátua do padre jesuíta Manuel da Nóbrega, em Salvador | Foto: Reprodução / Wiki |
Ambos os lugares teriam uma relevância educacional. Para
Marta, sua proposta "será um marco físico e simbólico ao qual as escolas
terão acesso e poderão levar seus alunos e suas alunas" e reforça a
legislação federal que rege sobre o ensino da história e cultura
afro-brasileira no ensino básico. "É importante lembrar que o sistema
interamericano de direitos humanos, do qual o Brasil é signatário,
estabelece a relevância dos direitos à verdade e à memória como
mecanismos de justiça. Ou seja, não trata-se apenas de preservar a
história, mas de também fazer justiça aos que foram vitimados e, através
disso, propor transformações sociais para as sequelas da escravidão que
reverberam até hoje em nossa sociedade, como, por exemplo, o racismo
estrutural", justifica.
Além do projeto de indicação, Marta Rodrigues também tem um
Projeto de Lei no Legislativo municipal que, assim como o PL de Hilton
na AL-BA, prevê a retirada de monumentos - com a inclusão de um artigo
específico no Estatuto da Igualdade Racial e de Combate à Intolerância
Religiosa em Salvador. Estas homenagens seriam, conforme propõe o PL,
distribuídas em museus já existentes com uma contextualização histórica
sobre eles.
HERÓIS QUE NÃO SÃO HERÓIS
A instalação de homenagens a escravocratas segue uma tendência de construção de uma narrativa vitoriosa para tais pessoas. Monumentos como a estátua de Borba Gato e o Monumento às Bandeiras, ambas em São Paulo; a estátua de Edward Colston - derrubada em Bristol, na Inglaterra -; e as estátuas dos padres Manuel da Nóbrega e Antônio Vieira; do primeiro governador-geral do Brasil, Tomé de Souza; e do traficante de escravos Conde Pereira Marinho - estas últimas em Salvador -, evidenciam essa ideia.
De acordo com o museólogo, gestor cultural e cientista
social Vinícius Zacarias, " a monumentalização de espaços públicos é uma
prática comum em diversos países no mundo". "No Brasil, desde a
Proclamação da República até a Ditadura Militar, estabeleceu-se um
sistema para consolidação da identidade nacional em torno de monumentos,
grandes instituições culturais e também nomeação de vias públicas com
personagens heroicizados, reconhecidos pela 'história oficial', presente
nos livros didáticos, por exemplo".
Segundo Vinícius, esses personagens são, em sua maioria,
homens brancos e ricos, "condecorados em altas patentes cívicas,
militares ou acadêmicas, oriundos ou forjados pela aristocracia da
época". Ele ressalta que os registros históricos sobre estes homens são
incontestáveis, mas o original legado deles é impreciso. "Ou seja, muito
dos imaginados heróis nacionais não foram tão heróis assim. Muito pelo
contrário. Embora possam ter dados significativas contribuições à “ideia
de país”, na realidade, muitos deles eram escravocratas, ditadores e
autoritários", completa o pesquisador, que também é doutorando do
Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFBA.
Monumento à Tomé de Souza, primeiro
governador-geral, responsável por expedições que capturaram
indígenas no
interior | Foto: Reprodução / Pelourinho Noite e Dia
|
Para Atailon Matos, mestrando no Programa de Pós-Graduação em
Arquitetura e Urbanismo da UFBA e pesquisador sobre a produção das
cidades latino-americanas, a cidade de Salvador tem marcas evidentes de
um passado de violências oriundas de um processo escravocrata e de uma
posição de ex-colônia. "Esse histórico colonialista e racista nos trouxe
até aqui, moldou e ainda molda o espaço urbano, construindo mecanismos
sofisticados, até mesmo de maneira simbólica", ressalta.
"O racismo operou e ainda opera na produção da cidade,
constrói monumentos, expulsa pessoas e define quem ou não deve ter uma
vida digna na cidade e acesso aos equipamentos de infraestrutura. Apenas
dentro de uma lógica racista de produção da cidade se levantam
monumentos de figuras escravocratas no espaço publico e as mantém de pé
até os dias de hoje. Enquanto a memória negra foi varrida, a dos
escravistas ainda permanece como símbolo de orgulho. Atualmente os
monumentos históricos escravocratas têm mais direito de permanecer no
espaço público do que a população negra.", diz Atailon Matos.
Ele cita como exemplo o Conde de Pereira Marinho, homenageado
com uma estátua na área externa do Santa Isabel. "Há registros
documentais e formais que ele fez 33 viagens de transporte de africanos a
serem escravizados no Brasil entre os anos de 1839 e 1850. Virou
provedor da Santa Casa com a fortuna que construiu do tráfico de
escravizados e, no rastro desse patrocínio a uma entidade de saúde sem
fins lucrativos, teve seu passado escravocrata maquiado. Isso é algo que
precisa ser discutido, precisamos trazer para a memória as histórias de
quem escravizou, não somente dos escravizados".
RETIRADA SEGUE TENDÊNCIA
Em conversa com o Bahia Notícias, o deputado Hilton Coelho reforçou que a ideia de retirada de monumentos proposta por ele veio em um momento "muito precioso" do ponto de vista histórico, com a retirada de mais de 60 homenagens em cidades estadunidenses e as recentes movimentações do "Black Lives Matter" - "Vidas Negras Importam", em tradução livre -, após a morte de George Floyd, nos Estados Unidos. O movimento encampa desde 2013 a luta contra a violência a pessoas negras.
"[Foram] Movimentações vigorosas que derrubaram as estátuas e
que tiveram repercussões, ao nosso ver, positivas no mundo todo. Então,
no sentido de dialogar com a sinergia deste momento de contestação do
escravismo, do colonialismo e do racismo estrutural, apresentamos esse
projeto", admite o parlamentar baiano.
Questionado se a retirada dos monumentos obedece ou reflete
uma nova consciência, Hilton diz acreditar que sim. "A consciência no
mundo vem se elevando, de maneira a enfrentar uma ofensiva conservadora e
um conjunto de opressões".
Conforme aponta o pesquisador Atailon Matos, a derrubada de
monumentos escravocratas em todo o mundo gerou uma série de
questionamentos. Alguns deles de que as ações eram atos de vandalismo e
de depredação do patrimônio histórico. No entanto, ele entende que
"derrubar esses monumentos tem um potente gesto simbólico de questionar
as narrativas imposta através deles". No entanto, ainda segundo ele, a
mudança de narrativa não é garantida.
"Retirar essas estatuas do espaço público e abrigá-las em um
espaço específico nos ajuda a reconfigurar a narrativa e entendermos
que, mesmo sendo patrimônio histórico e objeto de estudo, esses
monumentos não devem estar pela cidade como símbolo de orgulho da nossa
história. Questionar esses símbolos é também questionar seus processos
de construção e seu contexto político", sugere, destacando que o
reconhecimento ao direito à memória nas políticas urbanas é algo
fundamental.
ESTUDIOSO PROPÕE CONTRA-MONUMENTOS
Vinícius Zacarias diz desconhecer a existência de um "movimento de captura de monumentos públicos e para acondicioná-los em museus e reescrever outra narrativa, agora do ponto de vista dos oprimidos". Ele explica que a experiência nos museus e patrimônios é "sempre uma junção entre o cognitivo e o emocional" e, por isso, monumentos são criados. Eles teriam a função de relacionar-se com "o cotidiano público, numa interação entre passado e futuro".
"Talvez, esta seja uma proposta de 'museus de justiça', pois a
memória é reivindicada dentro de uma noção de 'justiça', nesses casos.
Porém, os museus não podem ser tribunais para referendos históricos,
justamente por esta ser a forma que muitos museus narram seus documentos
históricos", afirma.
Na opinião dele, o necessário seria a ressignificação no
espaço onde os monumentos foram originalmente criados, não a lógica de
"inversão dos extremos entre dominados e dominantes da memória". A ideia
dele é que "contra-monumentos" sejam construídos, em paralelo aos que
existem e exaltam figuras escravocratas. "E isso também é museu",
atribui.
Zacarias ainda questiona o perfil de visitantes de museus:
"Quem frequenta museus no Brasil? Ele está dentro do roteiro de visitas
anuais de quantas e quais famílias brasileiras?". Para o pesquisador,
esses espaços estão, por conta dos hábitos elitistas, distantes do
convívio da maior parcela da população brasileira - e seriam, portanto,
possuidores de um caráter "privado", mesmo sendo instituições públicas.
"Minha preocupação é equânime, tanto para quem visitará novos
'museus de justiça', tanto de qual história contará. Por isso, a
inversão de pólos de dominação é uma tática equivocada. É necessário ir
na espinha dorsal do problema. Um "contra-monumento" no mesmo espaço é
muito mais efetivo para as pessoas que passam cotidianamente por praças
ou largos. São possibilidades curatoriais".
Uma outra alternativa sugerida por ele é a educação para o
patrimônio, com a promoção de editais que ocupem culturalmente os
monumentos com a promoção de atividades de grupos artísticos e culturais
de jovens periféricos de Salvador.
Por Bruno Leite | Bahia Notícias
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