Dos discursos prontos, excesso de choro e medo de cancelamento por parte dos participantes, o reality passou a exibir tramas mais densas após o ator Lucas Penteado se desentender com quase todos os integrantes da casa ao propor uma disputa entre pessoas negras e brancas (veja aqui). A partir daí, os moradores, especialmente a rapper Karol Conká, iniciaram uma série de ataques ao colega na tentativa de “puni-lo” e a hashtag “abuso psicológico” seguido de #KarolExpulsa tomou conta do Twiter.
Em um dos momentos, a curitibana chegou a dizer que sua intenção é “deixar esse menino tantã”. Além disso, no último sábado (10), em conversa com Lumena, Nego Di e João Luiz, a rapper pensou em uma forma de expulsá-lo da mesa. "Vamos falar para ele: você vai comer depois, a gente vai comer aqui e você come depois".
Depois, ainda pontuou que Lucas teria que "lavar a bunda da galera", insinuou que ele usa drogas, questionou sua religião [candomblé], e chegou até a compará-lo ao ex-goleiro Bruno, condenado em 2013 pelo homicídio triplamente qualificado da ex-namorada, ocultação do cadáver, sequestro e cárcere privado do filho. Artistas como Lázaro Ramos,Taís Araújo, Anitta, Marília Mendonça, Neymar, Jojo Todynho, Emicida e Ludmilla a criticaram pelas declarações.
Como reposta imediata, as buscas pelo termo “tortura psicológica” (abuso) cresceram 610% no Google no Brasil entre 27 de janeiro e 2 de fevereiro, em relação aos sete dias anteriores (veja aqui). A palavra abuso nasce da etimologia "abusos", que em latim que significa “uso excessivo de algo”, e psicológico possui origem na palavra “psycho” que em grego refere-se à alma. Nesse sentido, o abuso psicológico significa aquilo que é utilizado em excesso para ferir ou machucar a alma, que é o que existe de mais natural, essencial e complexo em cada indivíduo.
Ao Bahia Notícias, a psicóloga Paloma Muniz, especialista em Teoria e Psicoterapia Analítica e mestranda em Psicologia Clínica pela PUC-SP, destaca que a pessoa que comete um abuso psicológico tem como característica a manipulação, que pode ser identificada através de comportamentos ameaçadores em que o agressor conduz a vítima a realizar seus desejos e vontades.
“São capazes de convencer com muitos argumentos de que a vítima é sempre responsável por tudo de ruim que acontece. Abusador diminui as conquistas do outro, humilha, sempre tem uma crítica destrutiva a fazer; ridiculariza, expõe, exclui, manipulando a percepção que o outro tem sobre si mesmo, distorcendo seu senso de realidade. Esse jogo pode levar a pessoa que sofre à sensação de impotência e desesperança, a tornando ainda mais vulnerável e alvo de novos abusos”, destacou.
Apesar dos efeitos no público não poderem ser calculados imediatamente, já que cada pessoa reage de uma forma, as normas legais do Brasil estão estabelecidas para frisar um limite aceitável. De acordo com o advogado baiano Jonas Limas, no caso do reality, a partir da ótica de demandas coletivas, o primeiro passo é identificar e denunciar as discriminações realizadas pela participante, no caso. “Acionar o Ministério Público (MP), entidades da sociedade, como Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). O próprio governo federal tem um canal de denúncias, que é o disque 100”, explicou.
O MP atua na defesa de demandas públicas - aquelas da coletividade, como ofensa a um determinado grupo - ou de relevância pública, como os chamados direitos individuais indisponíveis. “Aqueles que a gente não pode renunciar, como a vida, saúde, liberdade etc. Logo, em situações em que esses direitos são violados, o MP tem o poder e o dever de atuar. No BBB, a participante que submete outro participante a situação degradante, que ameaça este, pode ser processada. A pessoa que ofende um determinado grupo social ou racial pode ser processada. A violência pode ser configurada como tortura psicológica e, a partir do momento em que o poder judiciário for provocado, ela poderá responder criminalmente”, detalhou. Além disso, a própria Globo pode ser processada por conta de todo o contexto.
Até o fechamento da matéria, Karol Conká é alvo de 23 ações abertas no Ministério Público do Rio de Janeiro, de acordo com o UOL. “Todas as comunicações já foram devidamente encaminhadas para distribuição entre as Promotorias de Justiça de Investigação Penal da Barra da Tijuca”, declarou a pasta. A carreira da cantora também já está sentindo os impactos da “postura negativa” na competição. A curitibana já perdeu mais de 400 mil seguidores no Instagram, foi suspensa do festival pernambucano Rec-Beat (veja aqui), e teve a exibição do programa Prazer, Feminino, no GNT em parceria com a também ex-BBB Marcela McGowan, suspensa. Até mesmo um dos fã-clubes da cantora decidiu deixar de apoiá-la e desativou o perfil no Twitter.
“Nós, como fãs da carreira musical da Karol, decidimos criar esse perfil para informar e acompanhar ela (sic) no BBB. Mas, devido a todos os acontecimentos dentro da casa, percebemos que ela na verdade é uma pessoa horrível. Ela se demonstrou xenofóbica, soberba e falsa”, escreveu o perfil @ConkaBBB. Além disso, a gravadora Sony Music Brasil exibiu preocupação com os rumos da artista (veja aqui). Veja outra desistência:
Já a assessoria do intérprete do Fio de Malhação – Viva a Diferença chamou de “ilícitas” as atitudes da curitibana, depois da análise de vídeos, e avisou que irá iniciar um “procedimento” para responsabilizá-la pelos danos sofridos. “Após analisar os vídeos com as declarações da cantora Karol Conká, a assessoria do ator informa que iniciará os procedimentos que objetivam a responsabilização pelos danos oriundos dos atos ilícitos praticados pela artista”, informou.
PLURALIDADE DA POPULAÇÃO NEGRA
Quando a lista dos integrantes do Big Brother Brasil 21 foi divulgada, parte do público celebrou a possibilidade de, pela primeira vez na história do reality, o elenco ter uma equidade entre participantes brancos e não brancos (veja aqui). Afinal, se a intenção do programa é representar uma parcela da sociedade, nada mais justo de que isso seja refletido nos escolhidos e escolhidas já que 56,10% é o percentual de pessoas que se declaram negras no Brasil, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua do IBGE.
Entretanto, deixando em segundo plano a expectativa e pressão popular "para se ver mais na TV", cabe informar que a CBS - detentora do formato BBB no mundo - tinha anunciado em 2020 que todos os lançamentos teriam que conter pelo menos 50% de participantes negros, mestiços ou indígenas a partir de 2021. Ou seja, a escolha da Globo pela forma do elenco pode ter sido obrigada por questões contratuais.
Para além disso, após o estopim dos ataques preconceituosos de Karol Conká - que em alguns momentos contou com o apoio de Projota -, das problemáticas trazidas pelo ator Lucas Penteado, da postura “tida como equivocada” da psicóloga baiana Lumena Aleluia e dos comentários machistas do humorista Nego Di, o debate sobre a necessidade de perceber a população negra com toda sua pluralidade, em toda sua humanidade, também vem ganhando espaço.
Isso porque a falta de representação quantitativa nos espaços de poder ao longo dos anos alimentou no imaginário das pessoas que a população negra “é toda igual” ou que não tem “individualidades”. "Há uma má vontade por conta do racismo em enxergar a população negra em sua diversidade, né? Especialmente olhando para o passado de contribuições para a formação desse país. Se formos pensar enquanto povo, tivemos uma herança africana muito rica e ela é muito diversa. A África é múltipla de cultura e povos. Então, obviamente que um povo gerado dessa diversidade e em contato com os outros povos (europeus, indígenas, asiáticos) geraria uma população também diversa. Porém, uma das formas de ação do racismo é nos ver como se ‘fossemos uma coisa só’ para deslegitimar, o que faz parte do processo de colonização que tem o racismo como base”, apontou André Santana.
“Os descendentes europeus costumam relacionar seus costumes aos dos seus antepassados, apresentando diversidade. São hábitos de italianos, franceses, portugueses etc.Quanto a África a gente não tem isso. Tratam como uma coisa só. Com os indígenas acontece a mesma coisa. Tudo isso é feito para desqualificar. 'É uma máxima que tudo é igual, que todo preto se parece'. A TV reforça isso, pois como mostra poucos pretos, acaba só vendo um padrão de pessoa negra. Isso é péssimo porque somos imensos, maioria da população brasileira, e vivemos realidades diversas", reforçou o professor.
Santana chamou atenção que as discordâncias presentes no entre os participantes negros e negras de dentro do reality chama a atenção para ai interseccionalidade das pautas e opressões. O termo, ainda muito usado apenas no ambiente acadêmico, significa o estudo da sobreposição ou intersecção de identidades sociais e sistemas relacionados de opressão, dominação ou discriminação. ”Não dá para olhar para o racismo com um olhar único, ele opera sobre outras ações, atravessamentos, como machismo, classe social, regionalidade. Negros são diferentes. Homens negros, mulheres negras, pessoas negras pobres, pessoas negras pobres do Nordeste... vão sofrer racismo. É estrutural, é a base da sociedade brasileira, edifica nossas relações”, apontou e seguiu:
“É uma base comum, mas é atravessado por outras opressões. Então um homem negro do Nordeste é diferente de uma mulher negra do sul do Brasil. Ela sofre preconceito, mas pode ter alguns privilégios por ser do sul do Brasil, um local que se constituiu com uma ideia de superioridade para o restante do Brasil, né? E aí você vê o Nordeste sendo colocado nesse espaço de muito preconceito. Nesse momento de pressão do jogo, que explora suas tensões e inquietações, as pessoas colocam para seus privilégios e isso começa a diferenciar as pessoas”, lembrou. A própria Karol se classificou no jogo como “educada” por ser de Curitiba, Paraná.
A jornalista, humorista e militante Maira Azevedo, a Tia Má, o questionamento do público sobre os atritos entre as pessoas pretas dentro da casa reflete a necessidade de se pensar a imagem alimentada desde o processo escravocrata. “Precisamos falar de pluralidade. Está todo mundo cobrando que as pessoas pretas na casa pensem igual e tenham o mesmo discurso. Temos pessoas pretas com as mais diversas posturas. Algumas que aprovamos, outras que detestamos. Quando tem brigas entre os brancos (que também está acontecendo dentro da casa) não colocam responsabilidade em toda a branquitude”, frisou em conversa ao BN.
Por Júnior Moreira Bordalo | Bahia Notícias
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