Há uma nova aspirante a cloroquina no radar de Jair Bolsonaro. A queridinha da vez é a proxalutamida, um fármaco fabricado na China inicialmente testado para cânceres como mama e próstata, e agora para a Covid-19.
O presidente citou o medicamento ao sair de um hospital em São Paulo, após receber alta neste domingo (18). Ele estava internado havia cinco dias e se recupera de uma obstrução intestinal.
“A gente vê o mundo aí, alguns países investindo em remédios para curar a Covid, e aqui se você fala em cura de Covid passa a ser criminoso, Valdemiro. Passa a ser criminoso. Você não pode falar em cloroquina, ivermectina”, disse ao lado do apóstolo Valdemiro Santiago, líder da Igreja Mundial do Poder de Deus, que o visitou.
Eis a deixa para introduzir sua nova aposta no combate ao coronavírus. “Tem uma coisa que eu acompanho há algum tempo, e nós temos que estudar aqui no Brasil. Chama-se proxalutamida. Já tem uns três meses que isso aí... Não tá no mercado, é uma droga ainda em estudo, sendo estudada.”
Está certo num ponto: de fato, ela vem sendo avaliada como possível droga contra a Covid-19. O próprio presidente, porém, reconhece que “isso existe no Brasil de forma não ainda comprovada cientificamente”.
Sua aplicação contra a Covid-19 carece de aval de agências regulatórias como Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e a FDA (o equivalente nos EUA).
Segundo Bolsonaro, o remédio tem “curado gente”. Grupos bolsonaristas passaram, nos últimos meses, a vê-lo como milagroso. O deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL), filho do presidente, já havia demonstrado entusiasmo com a nova droga e propagado seus resultados pelas redes sociais.
A comunidade científica pede calma.
Ao contrário de outros medicamentos que Bolsonaro prescreve sem qualquer base científica para lidar com a doença, como a cloroquina e a ivermectina, a proxalutamida ainda não foi descartada como ineficaz nesta pandemia.
Seu uso, contudo, não teve nenhum estudo publicado em uma revista científica de prestígio. A praxe estabeleceu que todo resultado de pesquisa apresentado por cientistas seja revisado por outros especialistas. A rechecagem dos dados feita por pares dá mais solidez ao trabalho.
Durante a pandemia, Bolsonaro tem mostrado mais entusiasmo com medicamentos contra a Covid do que com vacinas. O presidente ainda não se vacinou (diz que só o fará depois de todos os brasileiros), mas não perde a chance de defender remédios que possam debelar a doença, a maioria deles já comprovadamente inútil para esse coronavírus em particular.
Em fevereiro, por exemplo, o ocupante do Palácio do Planalto anunciou que o Brasil testaria um spray nasal desenvolvido em Israel. Até agora, esses ensaios clínicos não prosperaram.
“Vamos ver se a gente faz um estudo sobre isso aí [a proxalutamida] pra gente apresentar uma possível alternativa”, disse o presidente a jornalistas na porta do hospital Vila Nova Star, em São Paulo. “Nós temos que tentar. Como sempre disse, na Guerra do Pacífico não tinha sangue pros feridos. E resolveram botar água de coco e deu certo.”
A água de coco intravenosa era um recurso hidratante usado de forma pontual diante da escassez de recursos clínicos, mas não há um estudo sério que ratifique sua efetividade.
O que importa, segundo Bolsonaro é “buscar alternativa”. “Com todo respeito. Eu não errei nenhuma ainda. Até lá atrás, quando eu zerei os impostos da vitamina D. Nós não erramos absolutamente nada no tocante a isso aí. Não é chute, é estudo. Agora, não consigo entender por que criminalizar qualquer possibilidade de se descobrir uma alternativa ao remédio. Será o peso da indústria farmacêutica?”
No Brasil, um grupo de médicos e pesquisadores ligados à rede de hospitais e serviços de saúde Samel, de Manaus, lidera os testes da proxalutamida contra a Covid-19. Trata-se de um bloqueador de hormônios masculinos (antiandrógeno) ainda em desenvolvimento pela farmacêutica chinesa Kintor.
Para o infectologista Alexandre Naime Barbosa, membro da Sociedade Brasileira de Infectologia, nada garante que a proxalutamida reduza os números de hospitalizações e óbitos causados pelo vírus.
“Essa droga não é utilizada em nenhum protocolo mundial, a não ser por grupos que têm motivação política ou econômica. Tem uma questão muito séria de financiamento por conta de algumas empresas que querem achar uma bala de prata, e depois da cloroquina e ivermectina é essa”, diz. “O Paraguai adotou isso ao arrepio da ciência, e outros países com política de saúde bastante duvidosa também.”
Segundo o especialista, o assunto está na Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde) dentro de um grupo que analisa as estratégias de saúde e as ferramentas que podem funcionar na Covid.
“Isso é mais um factoide que o governo federal coloca para tirar a luz do que realmente importa, que é a tragédia nacional que vivemos. Não há a menor comprovação de eficácia da medicação neste momento.”
O uso do medicamento é tema de um estudo polêmico que está sob investigação da Conep (Comissão Nacional de Ética em Pesquisa) por não ter tido todos os preceitos éticos seguidos.
“Há uma questão séria envolvendo o pesquisador Flávio Cadegiani aqui no Brasil. Foi utilizado um grupo controle 'escolhido a dedo', que foram os pacientes hospitalizados em Manaus na época em que houve a principal onda de Covid, em dezembro e janeiro, ou seja, um estudo sobre o qual pairam muitas dúvidas”, afirma Barbosa.
A Folha não conseguiu contato com Cadegiani, autor de um outro estudo que serviu de base para o TrateCov. O aplicativo desenvolvido pelo Ministério de Saúde sugeria a prescrição de hidroxicloroquina, cloroquina, ivermectina, azitromicina e doxiciclina a partir de uma pontuação definida pelos sintomas do paciente após o diagnóstico de Covid-19.
O médico Carlos G. Wambier, professor assistente e educador clínico do Departamento de Dermatologia da Alpert Medical School da Universidade Brown (EUA), que colaborou com o estudo de Manaus, defende que outros países ou hospitais façam experimentos ou estudos com a proxalutamida ou moléculas similares para obter mais evidências sobre seu uso e efeitos colaterais.
"O que não concordo é com médicos que jamais prescreveram antiandrógenos fazendo comentários contra o que desconhecem. Há um preconceito travestido de ceticismo que é muito ruim para a ciência. A mente tem que estar aberta para novas informações e tratamentos", afirma Wambier.
"A proxalutamida é apenas uma molécula antiandrógena. Há muitas outras disponíveis no mercado, mas a maioria nunca foi estudada para Covid-19. Apesar de termos entrado em contato com fabricantes, não houve interesse ainda. Eu acredito que a apalutamida, uma molécula da Janssen (Johnson e Johnson), possa ter o mesmo potencial em atingir melhora clínica observada com a proxalutamida", diz.
Wambier também cita a enzalutamida (Astellas), a darolutamida (Bayer), bicalutamida e flutamida, entre outras moléculas da mesma família. Também não há resultados publicados com essas outras moléculas que comprovem eficácia contra a Covid.
"Sabemos que a bicalutamida está sendo estudada nos Estados Unidos, e a enzalutamida está em investigação na Suécia. Porém agora no verão houve a calmaria sazonal. Quem sabe no inverno os estudos sejam retomados no hemisfério norte", completa.
Por Anna Virginia Balloussier e Patrícia Pasquini | Folhapress
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